Uma reflexão sobre um certo 15 de novembro e a proclamação da república
Em 1889 o Brasil ingressa no grupo de nações que aderiram à forma republicana de governo, seguindo uma tendência que vinha sendo predominante no mundo ocidental. Curiosamente, a maneira pela qual o país inaugura sua nova fase ocorreria através de um regime que, de algum modo, contraria a própria ideia da república, uma vez que o movimento de caráter militar se ergueria ao poder através da deposição da monarquia.
O modo súbito e em princípio “ordeiro” com o qual os militares assumiriam o poder – imortalizado na clássica cena do Marechal erguendo sua espada no Campo da Aclamação (atual Campo de Santana) – acabaria sendo bem capitalizado pelo grupo que “proclama” a república, que pôde ser veiculada como se sugerisse uma espécie de consenso, isto é, a ideia de que se tratava de algo natural e cíclico, um passo espontâneo e inevitável nos rumos da nação.
Mas os dias que se seguiram ao 15 de novembro tratariam de mostrar que de modo algum o movimento dos militares representava os anseios da maioria do povo brasileiro. Isso porque revoltas explodiriam em vários pontos do país, incluindo exemplos dentro dos próprios círculos do Exército. A historiografia produzida a partir da chegada dos militares ao poder caminharia no sentido de minimizar o fato de que a maior parte das instituições pouco participara das discussões acerca da implantação da nova forma de governo. Nem mesmo havia unanimidade nas próprias fileiras do Exército, uma vez muitos militares mantinham suas convicções na monarquia e jamais foram chamados para os debates, ao passo que ficariam de fora muitos civis adeptos da república.
E quem eram afinal os militares que tomariam a iniciativa da deposição da monarquia? Para entender o processo é importante compreender o papel de alguns personagens envolvidos nos acontecimentos. E nesse particular a figura que primeiro salta aos olhos não era a de um dos oficiais do Exército, mas do tenente-coronel Benjamin Constant, professor da Escola de Engenharia da corporação, uma das instituições mais prestigiadas do país. Positivista convicto e adepto das crenças cientificistas, seria uma das vozes mais eloquentes em favor da necessidade de instalar a república, e muito acabaria fortalecido devido a sua influência sobre muitos jovens estudantes que constituíam a chamada “mocidade militar”.
Alguns estudiosos, contudo, defendem a tese de que, apesar de suas convicções, Constant não via a passagem para o regime republicano como prioritário, de forma que sua destacada atuação dentre os membros da cúpula de militares republicanos teria se dado muito em função do engajamento político dos jovens estudantes da Escola de Engenharia, que acabariam por reforçar-lhe a liderança.
Deodoro da Fonseca seria outra figura importante, até porque ajuda a compreender como funcionou a instalação do novo regime. Mais identificado como um oficial ligado às tropas, isto é, de maior ascendência sobre militares de patentes inferiores, e pouco relacionado às instâncias técnicas ou intelectuais do Exército, o marechal seria alçado à liderança do movimento menos por suas convicções políticas do que por seu envolvimento com as causas dos militares na sua relação com o governo imperial.
É que as forças armadas passariam a ocupar, desde o fim da Guerra do Paraguai, quando começam de fato a ser organizadas, uma posição de relevância na vida pública. Esse poder adquirido pelos militares estaria por trás de muitos conflitos com o governo imperial envolvendo discordâncias que iam de salariais a reivindicações de autonomia e que aparecem com mais força a partir de 1884, durante as chamadas “Questões Militares”.
Deodoro não era propriamente um republicano e parecia mais inclinado a se colocar como um garantidor do império. No entanto, sua presença era fundamental para passar a ideia de que o movimento republicano constituía um anseio geral dos militares. O comprometimento do marechal com o prestígio das forças armadas teria sido decisivo para sua atuação, motivo pelo qual fora levado a sair de sua própria casa, onde se encontrava seriamente doente, para comandar as tropas que já se rebelavam. Na sede do governo Deodoro não declara de imediato a deposição do imperador, com o qual, ao que parece, buscaria entender-se. Seu alvo era a dissolução do ministério, chefiado naquele momento pelo visconde de Ouro Preto, conhecido pela sua falta de habilidade que muitas vezes injuriara as Forças Armadas.
A quartelada liderada pelo marechal seria bem-sucedida inclusive pela pouca efetividade na defesa do palácio, o que atesta, na visão de alguns historiadores, o caráter de obediência das tropas a determinações de militares de alta graduação e “espírito de caserna” como Deodoro. Esse fator poderia explicar que tropas organizadas e bem armadas como as que tratavam da segurança de autoridades do império fossem sobrepujadas por uma guarnição de militares revoltosos que sequer puderam contar com as condições estratégicas que seriam desejáveis para um movimento de tomada do poder, já que muitos especialistas, dotados de treinamento e táticas militares, não estavam entre os rebelados.
A partir da demonstração de força dos militares republicanos, simbolizados na figura triunfante de Deodoro, as coisas foram avançando da simples discordância quanto ao ministério constituído pelo imperador para a deposição da monarquia e a decretação da nova fase republicana. O novo regime se consolidaria rapidamente, com o exílio relâmpago da Família Real e a pouca contestação por parte de outros setores da sociedade, que só mais tarde compreenderiam que o movimento era de caráter conspiratório, não se tratando apenas de um procedimento de manutenção da ordem supostamente quebrada em função de um ministério mal constituído.
Como apontam muitos historiadores, o movimento republicano não seria apenas um resultado do anseio de um grupo de militares e certamente não seria bem-sucedido se não contasse com o interesse de importantes setores das elites nacionais. Cartas que o imperador D. Pedro II havia trocado com a Princesa Isabel, que assumira o comando da nação quando de sua longa estada na Europa para tratar da saúde, levaram estudiosos a levantar a hipótese de que o imperador, confrontando-se com a realidade das nações europeias – já em franco processo de industrialização – e assim constatando a necessidade urgente de reformas no país, já buscava preparar as bases para um Terceiro Reinado. Nele certamente as elites de base agrária teriam espaço reduzido, perdendo terreno para a chegada de forças mais preparadas para viabilizar o ingresso do país em nova fase.
Vale ressaltar que a estratégia de chegar ao poder sem despertar na sociedade, pelo menos inicialmente, maiores manifestações de contrariedade acabaria redundando no curioso fato de que a república se estabeleceria de fato, mas não seria oficialmente proclamada, o que só viria a ocorrer em 1993 durante o plebiscito no qual a população brasileira rejeitou o parlamentarismo e a volta ao regime monárquico e afiançou a república através do apoio ao presidencialismo.
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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