Que Leonardo nos inspire


Ciências Biológicas ou Letras/Literatura? Eis uma grande questão. Ainda mais quando destinada a um jovem interiorano recém-chegado ao Rio de Janeiro. Optei pela ciência da vida – em sua face biológica – e tenho sido feliz, desde então. Entretanto, é curiosa a existência de uma dúvida entre dois saberes aparentemente tão distintos. Confesso ter tido vergonha disso à época, pois eu acreditava que essa dúvida cruel mostrava, na verdade, minha imaturidade na decisão profissional. Hoje, porém, percebo que essa relação tem sido meu principal alicerce em sala de aula.

Essa percepção começa no curso de especialização (lato sensu) em Ensino em Biociências e Saúde, oferecido pela Fiocruz, aqui no Rio de Janeiro. Sim: existe um curso (especialização, mestrado e doutorado) destinado à área de Ensino! Lembro de ter me espantado com o fato, anos atrás, e de ter comemorado também, visto que eu era um dos únicos estudantes a levantar a mão quando o professor questionava quem tinha interesse em se tornar docente, ainda na época da graduação em Ciências Biológicas. Afinal de contas, lecionar e mediar conhecimentos requer habilidades específicas e uma formação sólida, o que encontrei na Fiocruz.

Dentre as inúmeras disciplinas oferecidas pela especialização, uma delas fez meus olhos brilharem: CIÊNCIA E ARTE. Que atrevimento, não é? Dois universos grandiosos intimamente mesclados em sala de aula. Será que isso daria certo? Já adianto que sim. E muito.

Os encontros eram coordenados pela Dra. Tânia de Araújo-Jorge e pela MSc. Anunciata Sawada, ambas pertencentes ao Liteb (Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos). No primeiro encontro, a professora Tânia nos entregou dois exames de eletrocardiograma: um paciente saudável, outro paciente com doença de Chagas. Os exames, contudo, não continham sinalização nenhuma e o desafio fora lançado “qual era o paciente doente?”.

Tínhamos em sala de aula biólogos, educadores físicos, jornalistas, entre outros profissionais. Nenhum médico. E ninguém com conhecimento suficiente para identificar o paciente com doença de Chagas. Os exames eram, aos nossos olhos, excessivamente idênticos. Após algum tempo, depois de esgotadas quaisquer possibilidades e tentativas de acertos com suas devidas justificativas, a professora Tânia nos ofereceu duas partituras musicais.

Elas eram, na realidade, duas transposições dos dados contidos nos eletrocardiogramas. Ou seja, estávamos diante dos mesmos exames, só que agora vistos em notas musicais. E, de modo impressionante, as músicas tocadas por aqueles dois corações eram completamente diferentes. Só na partitura tivemos uma percepção consciente disso. Um mesmo objeto: o coração. Duas linguagens: científica e artística.

Foi com atividades desse tipo que fomos recebidos nos encontros semanais. A professora Anunciata apresentou-nos animes japoneses, ficção científica e literatura, a arte da palhaçaria, jogos, análises de obras de arte de pintores ao redor do mundo, entre tantas outras intersecções entre esses dois saberes. Dos nomes, o que me tocou foi – certamente – Leonardo da Vinci. Seu nome, inclusive, foi dado à principal publicação destinada às discussões entre Arts, Sciences and Technology (www.leonardo.info).

Ciência e Arte me acompanharam pela especialização, quando compilei diferentes estratégias acerca do ensino em Biociências para alunos cegos e com baixa-visão, percebendo que muitos educadores têm sucesso nas abordagens quando mesclam criatividade artística com suas estratégias em sala de aula. No mestrado, também na Fiocruz, percebi que as artes da Perfumaria, Botânica e Química poderiam dialogar em prol do processo de ensino-aprendizagem de estudantes surdos do Ines (Instituto Nacional de Educação de Surdos).

Desde então sigo no magistério. Atualmente trabalho com estudantes universitários em diferentes cursos de saúde. A maior parte, recém-chegada do Ensino Médio, se mostra tensa com a dinâmica universitária e com os primeiros períodos da graduação. A Arte, mais uma vez, tem sido eficiente em tornar esses momentos mais divertidos, tranquilos e favoráveis a um aprendizado significativo por parte dos estudantes.

Todo semestre procuro tentar algo novo. Essas estratégias, certamente, recebem participação ativa dos alunos. Já retratamos estruturas celulares pela ótica de pintores de notórias escolas de arte, já confeccionamos trabalhos sobre aminoácidos em pergaminhos que deixariam Harry Potter, tenho que admitir, com certa inveja. Também associei aulas de Bioquímica com a literatura de George R. R. Martin – do tão aclamado Game of Thrones –, e o resultado tem me estimulado bastante. Não só a mim, como aos alunos que narram ter perdido o “medo” de Bioquímica depois das aulas temáticas.

O mérito: não é meu. É dos professores que contribuíram para minha formação e dos estudantes que embarcam nessa viagem deliciosa e lúdica. É, sobretudo, dos inúmeros pesquisadores do campo de Ciência e Arte espalhados pelo mundo que nos presenteiam com belíssimas publicações. São esses professores, alunos e pesquisadores que nos mostram que um jovem que pensa em Ciências Biológicas e Literatura não é tão estranho e imaturo assim.

Para mais informações sobre o curso de especialização em Ciência, Arte e Cultura, acesse: www.ioc.fiocruz.br (menu ENSINO).


Helder S. Carvalho é Ortoptista, Biólogo, Especialista e Mestre em Ensino em Biociências e Saúde pela Fiocruz/RJ. Atualmente é docente do Uni-IBMR e do Centro Universitário Celso Lisboa.


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