Pode ser a gota d’água
Nas últimas semanas fomos testemunhas de várias tragédias que levaram o país inteiro à comoção. É claro que aquelas que implicaram o fim de vidas humanas são as mais lamentadas, entre outras coisas porque fica a sensação de que talvez pudessem ter sido evitadas. Mas também não se pode minimizar o impacto das perdas de personagens da vida pública brasileira, responsáveis por uma produção sempre em alto nível de pensamento e cultura, como foram os casos do jornalista Ricardo Boechat e da grande dama das artes cênicas brasileiras, Bibi Ferreira.
Essa última nos interessa sobremaneira pela sua trajetória absolutamente irrepreensível. Com uma vida de quase um século praticamente dedicada ao teatro e à música, Bibi, entre tantos atributos, nos deixou o legado de um compromisso constante com a atividade em alto nível, sempre almejando a maior proximidade possível da perfeição, seja com relação a sua própria performance ou com o rigor na escolha dos espetáculos em que atuaria. E nesse particular, não há como não citar aquela que, segundo a própria artista, foi o ponto alto da sua brilhante carreira, a peça Gota d’água.
Tanto que depois de encerrado o espetáculo Bibi ficou quase uma década longe dos palcos, sua maior paixão. Esse seu momento sabático só seria interrompido quando a atriz se viu diante de um novo personagem, capaz de se ombrear ao da peça. Foi quando ela deu vida a uma outra grande referência de sua carreira, a cantora francesa Edith Piaf, que encarnou de forma magistral pelos palcos do Brasil. Mas detenhamo-nos em Gota d’água.
O texto escrito por Chico Buarque e Paulo Pontes era uma adaptação à realidade social e cultural brasileira de uma das mais importantes obras do teatro universal, a tragédia Medeia, de Eurípides. A peça encenada na década de 1970 aborda a ascensão de um sambista em direção à fama, mas para alcançar o sonho do reconhecimento Jasão tem de abandonar a esposa Joana, uma das maiores incentivadoras de sua arte, e seus dois filhos e ir viver com a filha de um grande empresário. A nova união foi justamente a condição exigida pelo ricaço para ajudar na carreira do genro.
A peça então se desenrola a partir dessa situação abordando principalmente a reação e os sentimentos da esposa abandonada, que ao final do texto vai ser o elemento disparador do acontecimento trágico. No texto de Eurípides Jasão (intencionalmente os autores mantêm o nome do personagem da tragédia grega) deixa a mulher, Medeia, para se unir à filha de Creonte, governante de Corinto. A justificativa era a de poder se aproximar dos nobres e do poder e com isso beneficiar os dois filhos do casal.
Jasão então oferece à ex-esposa algumas alternativas, como a de permanecer ao lado dele, mas vivendo no palácio como uma aia da rainha, ou a de exilar-se deixando os filhos, mas podendo gozar de uma vida abastada no exílio. Medeia não aceita as ofertas e passa a tramar uma maneira de se vingar. Depois de encontrar-se com Egeu, rei de Atenas, e fazer com ele um pacto, garantindo um lugar para uma fuga, ela põe em prática seu plano.
Fingindo-se arrependida, Medeia vai até Creonte e afirma que resolveu aceitar a proposta. Para dar uma demonstração de que não havia guardado nenhuma mágoa ela oferece à filha do rei um belo vestido, que no entanto estava empastado de uma substância corrosiva, capaz de deformar o corpo e levar à morte. Ao perceber o terrível fim da filha, que se encantara com a beleza do traje, o rei Creonte se abraça a ela e também morre. O clímax da tragédia ocorre quando Jasão, sabendo que aquilo era obra de Medeia, decide ir até ela, mas já estava sendo colocada em prática a parte final dos planos de sua ex-esposa. Ela resolve tirar a vida dos dois filhos para punir o ex-marido, que assim permanece vivo mas privado da presença de todos os seus afetos.
A cruel e comovente tragédia, na sua adaptação à realidade social brasileira, aborda a realidade dos pobres do país, que para terem o direito de almejar algo mais na vida precisam se submeter à vontade dos mais abastados, muitas vezes traindo seus princípios e valores. A tragédia coloca foco principalmente no personagem de Joana, a mulher abandonada e vítima das circunstâncias, justamente a personagem vivida por Bibi Ferreira.
Uma outra questão nacional abordada em Gota d’água tem a ver com as mudanças ocorridas no Brasil dos últimos anos (estamos falando dos anos 1970), conforme levantado pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, no prefácio que ele escreve para a edição impressa do texto.
Ali ele aponta como o processo de industrialização no Brasil, levado à frente a partir do governo de Juscelino Kubitsheck, tratou de promover um processo de separação entre as classes sociais no país. Com a possibilidade de ter acesso a itens de consumo, como eletrodomésticos e automóveis, a classe média passou a se diferenciar das camadas mais baixas que continuaram desprovidas da possibilidade de adquirir bens materiais. Esse descompasso predispunha o Brasil a manter, e ainda com mais intensidade, as grandes discrepâncias sociais que já nos caracterizavam. A mobilidade social registrada por Jasão representa assim essa ascensão da classe média, esboçando-se uma situação em que sobra para os mais pobres (simbolizados por Joana) a tragédia social que os acomete historicamente no Brasil.
Toda a riqueza do espetáculo, capaz de estabelecer conexão entre a realidade social brasileira, as mudanças no padrão socioeconômico da população e o sofrimento humano, se depara ainda com a situação política do país, vivendo um regime militar e com uma censura que impede os artistas de se expressar. Nesse ponto, a gota d’água é o limite em que se encontra uma sociedade sufocada pela falta de liberdade política e pelos intermináveis problemas sociais que atingiam (e ainda atingem) a maior parte da população.
Só com essa pincelada pelo Brasil dos anos 1970 e pelo mundo da Antiguidade grega já nos é possível vislumbrar por que uma artista que sempre tinha em mente a busca da perfeição, como Bibi Ferreira, entendia esse trabalho como o mais importante de toda a história das nossas artes cênicas.
E assim voltamos à vida real e a suas tragédias sociais e humanas, tão dolorosas quanto evitáveis se tivéssemos a capacidade de atuar em nossas tarefas e demandas com o mesmo cuidado, a mesma valorização da excelência demonstrados pela nossa insubstituível dama do teatro. Que esse exemplo de Bibi Ferreira nos fique como seu maior legado, motivando ações sempre mais comprometidas com a qualidade e a perfeição, já que tudo que fazemos tem invariavelmente como finalidade a satisfação do outro.
Assim talvez possamos nos ver livres das tragédias que podemos evitar, já que as inevitáveis, como a perda de pessoas inspiradoras, estão na esfera do poder de decisão dos deuses, pra usar a lógica que predomina no teatro da Antiguidade.
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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