Os povos e suas mitologias famosas
Da Antiguidade clássica até o estruturalismo de Lévi-Strauss, muito se tem refletido a respeito dos mitos e de sua função social e cultural. Provável fruto de culturas orais, as mitologias traçam um caminho de mão dupla, isto é, ao mesmo tempo que podem ser entendidas como criações humanas com vistas a controlar o imaginário de um grupo social também podem ser encaradas como força fundamental que orienta e delimita as ações e avanços dos seres humanos. Basta constatar que nenhuma sociedade, inclusive as que teoricamente superaram as fases ditas primitivas da cultura, é inteiramente isenta de construções mitológicas, mesmo que as narrativas orais se transformem em escrituras fundadoras, como grande parte das vezes acontece.
Como enredo de caráter fundador, destinado a reproduzir-se indefinidamente, as mitologias quase sempre se debruçam sobre a questão básica de explicar o surgimento de todas as coisas e seu “modus operandi” essencial de funcionamento. Assim, conhecer as narrativas mitológicas dos povos é um importante modo de apreciar e refletir sobre como vivem, funcionam e se orientam. E dentro desse panorama pode-se perceber que grande parte das mitologias se aplica em explicar a criação a partir do sentido de organização, ou seja, é o personagem mítico que desfaz uma desordem inicial e estabelece uma lógica de funcionamento destinada a perpetuar-se.
Esse caráter é bem identificado em algumas narrativas mitológicas como as do mundo grego. Zeus, o deus dos deuses, encontra os elementos já criados, configurando o “Kaos” (a feiura), e então dispõe as diversas estâncias propondo um sistema que, por parecer lógico e fluido, se transforma no “Kosmos” (a beleza). Não há, portanto, a preocupação de quem teria criado o universo, sendo importante apenas quem lhe conferiu a forma com que funciona. A lógica do que é observado na natureza também aparece nas construções mitológicas, que assim passam a adquirir função explicativa, ocupando um lugar que, na cultura ocidental, delegamos à ciência e à filosofia. Por isso, os antigos gregos buscavam assinalar a separação que a terra e o mar teriam descrito em relação ao céu, com o elemento ígneo (o sol), mais leve, indo parar no espaço, enquanto à terra, mais pesada, coube situar-se em posição oposta à do céu, do mesmo modo que as águas, fluidas e mais graves, ocuparam as profundezas.
Não há também como negar como as mitologias às vezes refletem a realidade política dos povos. Um bom exemplo é a mitologia descrita no Gênesis do mundo hebraico. Escrita pelos antigos habitantes das terras de Israel e Judá, busca fazer referência a sua situação de povo dominado pelos babilônios. Por esse motivo, o texto menciona “a terra vazia e sem forma” anterior à criação. Estariam eles falando do planeta ou se referindo a seu próprio território, destituído de sua presença e de sua cultura, e sob poder do invasor inimigo? Da mesma forma, a palavra bíblica narra a criação do sol apenas no quarto dia, o que está em flagrante oposição com a mitologia babilônica, segundo a qual Marduk, o astro-rei, está na base de toda a vida. Uma forma de resistência cultural às ideias que os dominadores naturalmente tentam infundir nos povos submissos? Quem sabe!
Os mitos também costumam aparecer como espécie de justificativa cósmica, capaz de explicar realidades sociais. Um bom exemplo é a mitologia do hinduísmo na Índia, que parte da noção de uma tríade divina, onde cada entidade é responsável por uma das fases da vida: Vishna preserva enquanto Shiva destrói, inaugurando novos ciclos, o mundo criado por Brahma. Este, ao inventar o mundo e as coisas, dá origem a outras duas entidades, Gayatri e Purusha, cabendo a esta última criar os homens. Mas enquanto os que se originam de sua boca tornam-se sacerdotes, os oriundos de seus pés ocupam o papel de escravos ou das classes menos prestigiadas na sociedade hindu. Em outras palavras, uma ordem social cuja causa encontra-se (e justifica-se) nos próprios eventos fundadores da vida.
O caráter dual que caracteriza as coisas e o mundo também aparece frequentemente retratado nas narrativas míticas. Entre os iorubás, no início havia dois mundos ao invés de um só, o Orum, sagrado, habitado pelos orixás, e o Ayiê, espaço dos homens, imerso no caos. Foi Olorum, a entidade suprema, quem intervém nomeando Odudua, a “divina senhora”, que, semeando os oceanos, garante a vida dos seres vivos. A ideia de fusão entre opostos também aparece nos mitos do “Império do Meio”, a China. Segundo sua narrativa, Yin e Yang, os princípios masculino e feminino, entram em estado de equilíbrio, o que interrompe o caos inicial, dando origem a Pangu, gigante do qual procedem os elementos fundamentais água, terra e sol.
Também não é raro que culturas em nada semelhantes no tempo e no espaço, apresentem os mesmos aspectos dentro de uma narrativa mitológica. Assim, Osíris no Antigo Egito é considerado o grande civilizador que estabeleceu os conceitos morais e ensinou técnicas que ajudaram o povo a se manter ao longo dos tempos. Papel semelhante ao desempenhado nos mitos dos povos tupis da América do Sul por Sumé, misteriosa identidade que teria ensinado os seus irmãos a praticar a agricultura e os seus ensinamentos religiosos e éticos. Em outros casos, elementos de narrativas mitológicas surgem reeditados em contextos diferentes, ainda que com adaptações, como se pode ver, por exemplo, no mito grego de Prometeu, um titã que, misturando terra e água, criou os seres à imagem e semelhança dos deuses. Qualquer semelhança com o homem formado do pó do Gênesis hebraico-cristão será mera coincidência?
E não se pode esquecer ainda a ação de muitas mitologias como pontos de partida de conhecimentos que no Ocidente entendemos como ciência. Antigas invenções como os gnômons, os relógios que fazem sua medição a partir do deslocamento da luz solar, aparecem relacionadas a compreensões do funcionamento de leis naturais auferidas através de narrativas mitológicas. Um bom exemplo é a cosmogonia dos guaranis de nosso continente, que dividem o céu em quatro partes diferentes, cada uma delas fazendo referência a uma entidade criada por Nhanderu (o deus-pai) para auxiliá-lo na criação da terra. Foi para entender qual dos deuses predomina na região observada que os indígenas empregaram o relógio de sol, que por sua vez já havia sido usado por povos distantes no tempo e no espaço (Egito, China, Grécia) em suas fases em que o conhecimento mitológico se impunha sobre qualquer outro. E, de fato, mesmo estando situado teoricamente em tempos imemoriais, os mitos atravessam os séculos e de uma forma ou de outra continuam influenciando no caminhar dos povos. E se alguém tem dúvida disso basta lembrar da folga semanal em sociedades hebraico-cristãs, prática que se perpetua, reproduzindo ao infinito a postura do deus que descansou no sétimo dia.
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