As bruxas na Idade Média
“O Sabá das Bruxas”, de 1798, do pintor espanhol Francisco de Goya. |
As bruxas em geral são conhecidas como personagens típicos da Era Medieval, quando protagonizaram os casos mais incríveis de acusações e foram presença constante nos ritos de condenação às fogueiras. Mas a ideia de mulheres amaldiçoadas, relacionadas a poderes mágicos e malignos, é muito anterior à Idade Média. Na mitologia e na cultura gregas, por exemplo, personagens como Medeia e Circe já aparecem relacionadas a possíveis dotes sobrenaturais, que podiam ser voltados para o mal. Na cultura romana, Diana, a guardiã dos bosques e dos animais, era associada a poderes misteriosos enquanto exercia sua influência sobre as lendárias mulheres amazonas. A própria cultura hebraica, base histórica das crenças cristãs, não deixou de registrar seus casos: o Velho Testamento mostra o rei Saul, numa de suas muitas crises de dúvida e indecisão, procurando uma feiticeira de nome Endor, mesmo sendo a consulta a esse tipo de intercâmbio com o sobrenatural considerada uma grave ofensa à lei de Moisés. E até na própria Europa crenças imemoriais sugerem já a existência do que mais tarde se conheceria genericamente como bruxaria, como é o caso dos “streghe” dos povos itálicos, criaturas a quem se atribuía a prática de ritos macabros, incluindo uso de objetos como caldeirões, por exemplo.
Apesar de associadas à cultura medieval, as bruxas curiosamente seriam mais perseguidas no período que, de modo geral, os historiadores situam como o final da Idade Média, o início da modernidade, entre as últimas décadas do século XV e as primeiras do XVI. Foi justamente num período de grandes transformações, que sugeriam uma guinada cultural a partir do estabelecimento de alguns cenários importantes, que os surtos de caças a mulheres tidas como praticantes de feitiçaria registrariam seus maiores e mais impressionantes números. Alguns autores relacionam isso a uma certa perplexidade das massas diante das muitas mudanças, como a ascensão da burguesia, as notícias de outras terras e principalmente as novas faces do discurso religioso, com o fortalecimento das igrejas reformadas. Essas transformações seriam responsáveis por guerras, surtos de fome e pestes, verdadeiras calamidades que levariam os indivíduos daqueles primeiros tempos de vida moderna a buscarem no passado possíveis causas e suas soluções. Daí a crença de muitos séculos nas bruxas e suas ações demoníacas ser trazida à tona como meio de reação aos males de uma nova ordem.
Assim, a elas e seus feitiços era atribuída culpa por acontecimentos que causavam grandes transtornos. De catástrofes ambientais e econômicas, como a perda de safras, por exemplo, até naufrágios e derrotas em guerra, tudo podia despertar surtos de perseguição, nos quais ocorriam muitas condenações, em geral de mulheres que eram tidas como misteriosas, feias, as mal faladas, e aquelas a que se atribuía hábitos sexuais considerados contrários à moral. Entre 1580 e 1599, por exemplo, a cidade francesa de Triers desencadeou uma brutal perseguição a mulheres suspeitas de bruxaria, depois que duas colheitas seguidas fracassaram. O clima de animosidade se espalhava de tal maneira, que pessoas acusadas não hesitavam em delatar – muitas vezes de forma mentirosa – outras pessoas, o que acabava gerando detenções em massa, quase sempre acompanhadas de tortura, das quais extraíam muitas confissões. O resultado desse processo insano era um verdadeiro festival de fogueiras por várias partes da Europa, configurando terríveis autos de fé, que aos poucos acabaram se tornando eventos de diversão para os que escapavam. Os números finais desse cenário são estimados em aproximadamente 100 mil processos, que teriam redundado em algo em torno de 60 mil pessoas que acabaram nas fogueiras. Um dado importante é que parte da imagem negativa que se tinha a respeito das bruxas vinha da identificação delas com judeus, um dos grupos que mais seriam perseguidos naquela época. Acreditava-se, por exemplo, que durante os Shabbats, uma das principais celebrações judaicas, as atividades das bruxas se intensificavam e elas então se reuniam para planejar ações demoníacas, para as quais raptavam crianças que eram oferecidas em banquetes onde também se praticavam orgias.
Aliás, a forte perseguição que também ocorria com judeus surpreendentemente colaboraria para diminuir a incidência dos surtos de caça às bruxas. Isso porque nos países da Península Ibérica, que funcionavam praticamente como quartéis-generais da Contrarreforma, a ânsia de combater os praticantes da religião de Moisés – vistos como hereges tanto quanto os protestantes – levava a uma menor preocupação com a influência das bruxas. Essa distância levaria a que, diante dos excessos cometidos no restante da Europa, a igreja resolvesse entrar na questão. Assim, foi criado o Tribunal de Inquisição, com o objetivo de controlar os processos acusatórios, determinar como tinham de ocorrer e garantir a defesa aos acusados. Uma das modificações mais importantes instituídas pelo tribunal seria a proibição de extrair confissões mediante torturas, sendo necessária, para se empregar esse nefasto meio, a autorização de autoridades eclesiásticas superiores, que só a forneciam em casos considerados extremos.
Um capítulo à parte na história desse período foi a publicação do livro “Malleus Maleficarum” (O martelo das bruxas) em 1486. Escrito por dois aguerridos inquisidores alemães, a obra ajudaria veementemente a consolidar a teoria de que as bruxas eram parte de um grande plano arquitetado por Satã para dominar o mundo e dar fim à cristandade. Pior que isso, seria quase uma bíblia para aqueles que podiam influir em processos de perseguição às bruxas. Algumas teses bastante curiosas eram desenvolvidas no livro, como a ideia de que as mulheres ofereciam um maior poder de desencaminhar moralmente os homens devido a uma falha original em sua formação. Como foram criadas, como relata o Gênesis, a partir da costela do homem, um osso em formato curvo, já estariam predispostas ao mal porque contrariavam a virtude da retidão. É preciso frisar inclusive que a caça às bruxas foi uma prática, antes de tudo, sexista, porque foram muito raros os casos de condenação por feitiçaria envolvendo homens. O livro se tornaria um verdadeiro best-seller, no final do século XV, e um clássico dos estudos de demonologia.
A febre das fogueiras na Europa também estenderia seus tentáculos pelo Novo Mundo. As colônias inglesas na América veriam muitos casos de processos contra bruxas, culminando em 1692 com o famoso caso de Salem, relatado em livro e transformado em filme. O Brasil também não ficaria de fora, até porque as execuções de acusados de bruxaria não ocorreram em Portugal com a mesma intensidade de outros países, sendo muitas vezes feita a opção por penas opcionais, como o degredo. Como resultado disso, muitas bruxas, na verdade benzedeiras, parteiras e praticante de métodos curativos “estranhos”, foram mandadas para o Brasil. Algumas delas seriam aqui vítimas de processos de acusação de bruxaria, como uma certa Isabel Pedrosa de Alvarenga, moradora de São Paulo, que em 1767 foi encontrada portando objetos suspeitos, como bicos de pássaros e umbigos de bebês (as bruxas eram acusadas de devorar crianças). Detida e acusada de praticar feitiçaria, a mulher, que afirmava viver de esmolas, jamais admitiu sua culpa, mas mesmo assim foi mandada para Lisboa para ser julgada. Na documentação que contém o relato desse acontecimento não há nenhuma informação sobre o destino final de Isabel.
À medida que as conquistas da modernidade foram se firmando, os surtos de perseguição às bruxas e suas fogueiras foram se extinguindo pela Europa. Há ainda algumas notícias de espetáculos públicos até ao longo do século XVIII, e o último registro oficial dessa prática teria ocorrido em 1782 na Suíça. Com ele, um dos momentos mais vergonhosos da história do Ocidente Cristão. Uma longa e dolorosa página de intolerância, fanatismo e ignorância é, para lembrar o trágico destino das condenadas, literalmente queimada.
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