A Inquisição no Brasil
Na esteira das intensas ondas de perseguição religiosa que explodiriam na Europa, a Inquisição voltava suas baterias para a possibilidade da presença de opositores da Igreja nas possessões ibéricas na América. Assim, desembarca para sua primeira visita ao Brasil a partir de 1591, atrás de heresias e desvios de conduta em relação à fé pregada pela religião católica. O inquisidor Heitor Furtado de Mendonça demonstrou grande inquietação ao ouvir falar das atividades de feitiçaria e idolatria praticadas principalmente na região Nordeste onde a presença europeia já havia se expandido com mais força.
Naturalmente não se ocupou dos índios, porque já os tinha como criaturas afastadas da fé, segundo as informações chegadas ao Velho Mundo. O Santo Ofício na verdade só podia dar conta dos que tivessem sido batizados, de modo que o alvo das investigações da autoridade eclesiástica foram principalmente os cristãos convertidos e os europeus já cristianizados que por ventura tivessem incorrido em práticas heréticas. E o fato é que a farta documentação produzida pela Inquisição revelaria muito da religiosidade que se desenvolveria naquele Brasil do século XVI e que seria base para se entender muitas questões ligadas a uma identidade nacional.
Cristãos batizados e de fé católica estavam entre os muitos que tiveram de se explicar perante a autoridade eclesiástica, muitas vezes assumido culpas e delatando outros participantes visando redução para suas próprias penas. Há quem já tenha afirmado a presença no catolicismo do século XVI de componentes muito próprios dos cultos populares de influência pagã, que por quase toda a Idade Média caracterizaram as práticas da Igreja. Naquele momento são ainda muito recentes as iniciativas reformistas impetradas por Roma, visando fortalecer a fé católica para o enfrentamento com os adversários reformados.
Assim, afastados das ideias contrarreformistas e da pressão da Inquisição na Europa, parece natural que os cristãos na América tivessem de algum modo se seduzido pelos rituais mágicos, banhos de ervas, curas, consumos de substâncias extasiantes e todas as demais coisas que os cultos indígenas ofereciam, em oposição a promessas paradisíacas vagas e distantes, difíceis de visualizar por uma gente rude e iletrada como aquela acostumada à dura vida nos trópicos.
Também é bastante reveladora a presença de um grande número de mamelucos entre os inquiridos, alguns dos quais praticantes de cultos mistos ou exóticos, apesar de batizados. Uma gente dividida entre duas referências culturais e que talvez tenha encarnado pela primeira vez na cultura brasileira a ideia de “ninguendade”, um conceito que seria cunhado pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Constituindo já um número muito grande de habitantes do país, esses mestiços naturalmente penderam, pela força da questão econômica, para as atividades dos seus pais portugueses, sendo levados a se engajar nas engrenagens “produtivas” se especializando no apresamento de seus próprios ancestrais indígenas.
É possível que a convivência com o cotidiano da religiosidade nativa tivesse reacendido nesses mestiços identidades que pareciam há muito soterradas, que agora voltavam à tona através de práticas que pareciam ganhar força – desafiando as estruturas ideológicas que os europeus tentaram implantar –, ao sugerir a soberania das culturas indígenas, desejosas de se reafirmar num ambiente em que povos vindos de fora se impunham de forma hegemônica e já mostravam seu potencial de ameaçar o modo de vida há milênios desenvolvido pelas culturas do continente.
Escravos africanos, chamados na época de “negros da Guiné”, foram outro grupo bastante presente nos relatórios da Inquisição. Eram àquela altura em número relativamente pequeno no Brasil, se compararmos com os milhões que haveriam de vir pelos três séculos seguintes. Porém, sendo escravos, figuravam na mesma lógica dos indígenas que se encontravam em cativeiro, naturalmente se interessando também em buscar consolo nas práticas religiosas da terra.
Vários outros grupos podem ter se abrigado no caráter aparentemente livre das práticas do lado de cá do oceano, pois muitos marranos, ou cristãos-novos de origem portuguesa, viviam espalhados pelo nordeste do Brasil, mantendo em geral vida religiosa dúbia, anunciando-se como seguidores de Jesus na vida pública, mas conservando na intimidade do lar práticas judaicas, o chamado criptojudaísmo.
Apesar da necessidade de ocultar a verdadeira identidade, viviam até então em uma situação bastante confortável em relação a seus confrades na Europa, pois pelo menos não eram obrigados a se deparar com denunciantes ou com autoridades inquisitoriais, apesar da existência de indícios de que também no Brasil havia os famigerados “agentes” da inquisição. Os acusados de feitiçaria e de práticas de sodomia (homossexualismo) também eram muito perseguidos pela Igreja de um modo geral, e certamente haveriam de sê-lo de modo mais intenso com a visita do Santo Ofício.
A Inquisição faria outras visitas à então colônia, mas nada que chegasse a ameaçar o estatuto de terra de relativa liberdade de culto que levaria a que pelos próximos séculos muitas pessoas para aqui emigrassem fugindo de perseguições ou em busca de viver em uma sociedade na qual as opções religiosas não fossem tratadas com um rigor que impedisse a garantia de vida ou o estabelecimento da cidadania.
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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
* womni.blogspot.com
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