O prazer também se aprende


“É preciso gostar para criar no outro o gosto, trabalho de emoção e afeto que só pode partir daqueles que se dispõem verdadeiramente a isto.” – Armindo Trevisan

É preciso gostar para criar o gosto no outro!

Todavia, até que ponto nós, adultos, gostamos de ler?

Será que compreendemos, de fato, a importância da leitura em nossas vidas e como ela pode determinar o desenvolvimento do ser humano?

Se, por um lado, a literatura, a leitura fruição, a leitura prazer é capaz de suavizar nosso caráter, nos tornar mais sensíveis e nos transformar em pessoas mais solidárias e mais atentas ao mundo que nos cerca, por outro, o ato de ler mobiliza, simultaneamente, todas as capacidades superiores do cérebro: atenção voluntária, memória, abstração, generalização, linguagem, inferência…

Trocando em miúdos, quanto mais lemos, mais inteligentes ficamos. Todavia, não me refiro aqui à aquisição de informações e conceitos que servirão de base referencial para outras e mais complexas leituras. Como dados, informações e a familiaridade com estruturas frasais mais elaboradas ou ainda com a linguagem metafórica. Obviamente, isso também ocorre e é o que vai servindo de base para a construção de um leitor maduro. Refiro-me, nomeadamente, à exigência da mobilização de capacidades cognitivas que apenas o ser humano possui e que, justamente por possuí-la, torna-se cada vez mais diferenciado da condição animal em que nasceu.

Essas capacidades eminentemente humanas não são herdadas a partir da genética e muito menos se caracterizam como dons divinos. Podem ser legadas culturalmente aos nossos filhos e nossos alunos. Porque o que nos torna, de fato, ser humano são as capacidades forjadas, sistemática ou involuntariamente, no cotidiano de toda a vida do sujeito. Ou seja, caracterizam-se como herança cultural. É o grupo social no qual se está inserido que determinará o grau de inteligência de cada membro que está sob sua tutela, sob o poder de sua educação.

Esse conceito não é novo, mas convive simbioticamente com a ultrapassada crença de que as capacidades de cada um emergem de dentro de si e são apenas determinismos herdados de pai e mãe ou de alguém da família.

Se o grupo social que abriga o sujeito tiver clareza desse conceito de desenvolvimento humano, todas as ações desenvolvidas com as novas gerações serão encaminhadas com intencionalidade e planejamento. Ou seja, é possível acelerar o desenvolvimento das capacidades superiores do cérebro através da leitura desde que a criança nasce.

Não é por acaso que, em todas as culturas do mundo, temos referenciais e experiências da família em torno de um livro, de um ancião no centro de um círculo de crianças ou de clássicos da literatura sendo revisitados através de todas as formas de representação, seja como filme, desenho ou animação. E todos, adultos ou crianças, se encantam e seriam capazes de assistir centenas de vezes aos mesmos episódios sem cansar, mesmo sabendo como termina. E isso só ocorre porque as narrativas nos constroem. É através delas que compreendemos melhor o mundo e é por elas que, nos desafiando, lançamo-nos em novas experiências do cotidiano.

Só pelo discorrido até agora já seriam suficientes os argumentos para a necessidade de se formar leitores. De se saber trabalhar bem com a leitura. Porém, isso é apenas a ponta do iceberg, isto é, isso é apenas o que aparece. A dimensão mais importante e mais apaixonante, como diz Saint Exupéry, não é visível para os olhos. Só se vê bem com o coração, ele complementa. E é exatamente aonde se deve chegar: perceber que formar leitores é uma necessidade tão urgente e necessária como o alimento que sai do seio materno para garantir as primeiras imunidades de nossos filhos. Como também é um ato de amor à vida alheia que só quem ama é capaz de fazer. Também por isso precisamos, com a mesma urgência, formar famílias e professores leitores, pois ninguém dá o que não tem.

Indico algumas ações que já estão funcionando em famílias e escolas que assessoro. Quem sabe você não pode ampliar essas propostas com algumas que já pratica.

Para as Famílias

QUANDO
AO INVÉS DE
TENTE

Todos os membros da família estiverem em casa

Cada um ficar fazendo algo independente

Chamar a atenção para algo interessante que saiu no jornal do dia, numa revista ou algo que você leu no trabalho.

Estiver lendo algo que o encante ou que seja muito engraçado

Sentir prazer ou rir sozinho

Compartilhar, lendo em voz alta e pedindo a opinião de todos.

Nos momentos que deseja silêncio para poder ler

Exigir um ambiente calmo ou se retirar

Mostrar a delicadeza do que está lendo e o quanto aquilo é capaz de dar prazer.

Sair com a família

Apenas comer ou brincar

Procurar um local onde também haja uma banca ou livraria e comente alguns títulos e imagens de livros interessantes.

O final da semana se apresentar sem programa

Lastimar e ficar administrando frustações

Relacionar um jogo eletrônico ou desenho animado com um livro sobre o tema e leia em voz alta para todos, provocando comentários entre as semelhanças e diferenças existentes nos dois tipos de entretenimento.

Não houver programas ou dinheiro para o lazer

De se entristecer

Levar suas crianças para uma livraria (onde podem apenas ler na seção infantil) ou a uma biblioteca.

Terminar de ler um livro que a deixou encantada

Silenciar e ficar apenas pensando em como acabaram aqueles episódios

Utilizar sua voz mais suave e emocionada para contar aos seus familiares sobre as suas emoções.

PARA A ESCOLA
QUANDO
AO INVÉS DE
TENTE

Planejar o trabalho com qualquer texto ou livro em sala de aula

Entregar o texto para cada aluno ou pedir que abram o livro em determinada página

Despertar o interesse pelo assunto e pautar as crianças com relação ao suporte (de onde o texto foi tirado) e ao autor.

Os alunos demonstrarem reconhecer o suporte, o autor ou o ilustrador

Ignorá-los ou dar pouco valor para o fato

Aproveitar os comentários para traçar um perfil sobre o que eles levantaram.

As crianças já estiverem com os textos

Apresentar também as perguntas sobre o lido

Deixar que elas pratiquem a primeira leitura silenciosa, como souberem.

Houver tempo suficiente para a leitura do texto escolhido

Perguntar algo

Dar a sua opinião positiva sobre algum aspecto do texto, deixando um suspense.

O diálogo estiver aquecido

Apressar a discussão

Levantar e escrever no quadro uma ou duas informações que eles conseguiram abstrair sozinhos.

Se esgotar o assunto abordado pelo texto

Falar sobre o que eles não conseguiram desvelar

Fazer a leitura do início do texto, com ritmo, fluência e entonação adequadas, parando num ponto interessante para a curiosidade das crianças.

Todos concluírem a leitura

aplicar um questionário para ver se eles entenderam o texto

Ler com eles cada parágrafo, estrofe ou parte e escrever, coletivamente no quadro, uma síntese com as palavras dos alunos.

Achar que o texto está bem trabalhado

Passar para o trabalho com outro texto

Aproveitar o que foi construído a partir desse trabalho para elaborar uma resenha, indicando o livro ou o texto lido para outra turma.


Sandra Bozza é linguista, filósofa, psicóloga, socióloga e escritora. Professora de Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, de Literatura Infantil, de Linguística e de Metodologia de Ensino de Alfabetização e Letramento. Em 1991, fez parte do grupo que produziu a Proposta de Alfabetização para o Currículo Básico de Curitiba. Foi considerada pelo MEC como uma das cinco propostas mais avançadas do País, e que anos mais tarde serviu de base referencial para os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e para a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9.394/96), na questão de avaliação de Língua Portuguesa. Autora dos livros “Na escola sem aprender? isso não!”, “Avaliação e aprendizagem: entre o pensar e o fazer”, “Língua Portuguesa a Partir do Texto” (4 Volumes) e “Coleção Trabalhando com a Palavra Viva” (2 Volumes).


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