Tiradentes – O herói nacional em carne e osso


Tiradentes é com certeza o mais consagrado herói nacional, uma biografia consolidada pelo forte apelo popular da sua história. Mas ao lado disso também não faltam análises que permitem compreender como foi alçada a essa condição a memória do “Mártir da Inconfidência”, principalmente durante a instalação da república. Apesar de todo um imaginário construído quase à sombra de um mito, a pesquisa historiográfica sobre sua vida, publicada nas últimas décadas, tem revelado vários aspectos da trajetória do alferes que de alguma forma tem permitido contestar a imagem criada em torno dele.

Uma das fontes mais abundantes disponível para a pesquisa sobre Tiradentes e a Inconfidência é a chamada Devassa, a peça jurídica produzida pelo sistema de direito português para investigar e punir os rebelados, que há alguns foi organizada e disponibilizada para o público. Nesse documento constam muitas informações que apontaram caminhos de pesquisa que levam à possibilidade de confrontar a biografia com que Tiradentes foi apresentado à memória nacional.

Dentre as várias possibilidades de contestação à biografia do inconfidente que se popularizou pelo país estava a ideia de que Tiradentes pertencia às camadas mais empobrecidas da população. Conquanto seja fato que o alferes não estivesse entre os mais abastados participantes da conjuração, ele estava longe de se assemelhar economicamente à maioria das pessoas que viviam em Vila Rica e arredores.

Anos antes de a conjuração ser desbaratada pelas autoridades lusitanas, um documento dá conta de um pedido de Joaquim José de concessão e medição de 43 pontos de extração mineral, no qual inclusive alega possuir condições de explorar por possuir grande número de cativos. Outros documentos sobre as leis que regiam as atividades empresariais das Minas Gerais da época atestam que uma quantidade tão grande de concessões de terras era vedada legalmente, só sendo possível alcançar mediante relações bem cultivadas com autoridades e membros do governo. Requisitos que naturalmente não são de alcance dos indivíduos menos favorecidos naquela sociedade.

Além disso, outras informações constantes da Devassa dão conta de que fazendas, sesmarias, uma herança razoavelmente polpuda e empréstimos a outras pessoas também faziam parte dos bens confiscados pela coroa portuguesa. Comparado aos recursos e posses de outras figuras da Vila Rica da segunda metade do século XVIII, pode-se afirmar com tranquilidade que Tiradentes estava entre os grandes proprietários da região.

A fama de desprendido e movido unicamente por uma ideologia libertária pode ser também contestada a partir das informações constantes em uma outra importante fonte histórica, os escritos de Tomas Jefferson sobre suas ações como embaixador estadunidense na Europa. O documento cita o encontro com um certo Joaquim José da Silva Xavier na capital francesa, em que este estaria interessado em obter apoio para uma revolução em seu país de caráter republicano similar à que a ex-colônia inglesa havia realizado alguns anos antes.

Os escritos revelam que a princípio Jefferson prometeu consultar seus superiores em seu país, tendo mais tarde respondido que os Estados Unidos prometiam ceder armas e homens treinados, desde que os revolucionários pagassem por isso e com a possibilidade de que, uma vez bem-sucedida a conjuração, a nova república se comprometesse a adquirir alguns bens produzidos pela nação norte-americana, dentre eles uma quantidade estabelecida de trigo. Em cotejo com essa fonte, outros documentos falam em um suposto grupo com intuitos revolucionários, reunidos sob a denominação de Vendek e formado por brasileiros que estudavam em Portugal, do qual o alferes seria o emissário naquele encontro.

Outro fato concreto ligado a essa suposta reunião com o diplomata estadunidense consta de um documento do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, que informa sobre um pedido do inconfidente à rainha D. Maria I para concessão de uma permissão para armazenamento de trigo no Rio de Janeiro. A data do documento sugere que a ida do alferes a Lisboa teria ocorrido alguns dias depois do encontro com Jefferson na França. Há também o registro do retorno de Joaquim José a Paris de onde se sabe que teria embarcado de volta ao Brasil.

Ou seja, se a interpretação histórica desses vários documentos estiver no caminho certo, o Mártir da Inconfidência de um lado articulou apoio estadunidense para o movimento, mediante um compromisso comercial de adquirir o trigo por lá produzido, e de outro teria se antecipado para ser o comerciante mais preparado para receber e distribuir pelo país, então independente, o novo artigo que passaria a circular pelo mercado nacional. Essa possibilidade, inclusive, romperia com outra afirmação sobre Tiradentes usada para marcar sua condição de inferioridade econômica frente aos outros inconfidentes: a de que jamais teria viajado para outro país.

Um outro documento, encontrado no Arquivo Público de Minas Gerais, revela outras informações que ajudam a compor um quadro mais objetivo da personalidade do herói inconfidente. Trata-se de um processo no qual uma certa Antonia Maria do Espírito Santo tenta reaver das autoridades coloniais, entre os bens confiscados pela coroa quando da prisão de Tiradentes, a posse de uma escrava e seus dois filhos, que lhe teriam sido doados pelo alferes antes do seu envolvimento com a conjuração.

Na peça jurídica a defesa da ex-concubina tenta aproveitar a pouca simpatia que as autoridades lusitanas deveriam manter em relação ao conjurado alferes, procurando mostrar que Antonia, bem mais jovem que Tiradentes, havia sido por ele iludida com promessas de casamento, que não foram cumpridas, apesar de ambos terem tido uma filha.

Um depoimento de uma prostituta da época com quem teria passado uma noite também colaborou para montar a imagem de um tipo dado a ludibriar “mulheres indefesas”. Ela conta que o alferes teria prometido obter uma colocação para seu filho nas tropas militares de Vila Rica, o que, segundo alega, não vinha conseguindo em função de sua profissão e posição social. Segundo narra, Tiradentes havia feito a promessa (que não teria cumprido) inclusive na presença de outros frequentadores do bordel, que poderiam servir como testemunha.

Esses e outros depoimentos constantes tanto da Devassa quanto de outros registros jurídicos ajudam a montar a ideia de um Tiradentes um tanto “falastrão”, algumas vezes faltando com a prudência que se poderia esperar de quem está envolvido em um movimento inconfidente. Aliás, esse é um traço que aparece em vários momentos em documentos falando sobre ele, o que talvez explique o fato de ter sido o único punido com a pena capital, já que imprudentemente produzia provas contra si mesmo à vista de outras pessoas.

Enquanto outros conjurados poderiam negar ou minimizar sua participação, já que atuavam de forma mais discreta, o alferes já havia inclusive recebido reprimendas militares por falta de cuidado e exageros ao expressar seus pensamentos e ideias. É possível que essa imprudência seja na verdade a confissão que os historiadores afirmam que teria feito, em contraste com os outros inconfidentes, que procuraram de todas as maneiras convencer as autoridades do reino de sua inocência.

Mas mesmo que seja o tipo descrito com essas características, conforme aparecem nos documentos, Tiradentes não era nada que destoasse do padrão cultural predominante na Vila Rica do século XVIII. Cidade no epicentro da produção aurífera das Minas Gerais, possuía uma vida de hábitos modernos, com muitos teatros, saraus, eventos religiosos e visitas de nobres. Os abastados como Tiradentes frequentavam bordéis e cabarés com regularidade, e as relações não oficiais, isto é, baseadas em concubinato, eram naturais e em alguns casos de conhecimento de todos. Apesar das muitas igrejas e devoção, Vila Rica não era na prática uma cidade conservadora.

Também não devem causar espanto os desacertos amorosos atribuídos a um sujeito como o Tiradentes, que afinal vivia grande parte de seu tempo tratando de seus negócios, inclusive no Rio de Janeiro. Sem contar as inúmeras ausências por causa da sua condição de alferes e de sua atividade como dentista. Joaquim José da Silva Xavier até poderia perder, com essas revelações sobre a sua vida real, a aura crística que os artistas e historiadores desenharam atendendo ao objetivo dos líderes da república de criar um herói nacional que simbolizasse o sentimento cívico daqueles “novos tempos” em que a monarquia era superada.

Mas nada disso prejudica a imagem libertária de alguém que arrisca a própria vida em prol de uma causa. Tiradentes era, antes de tudo, fiel aos ideais revolucionários que abraçou, como se pode constatar das muitas leituras que possuía e da visão de mundo que pôde desenvolver ao pleitear os ideais iluministas e libertários de outras nações como meta de futuro próspero e livre para a sua própria terra.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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