Mais do que nunca é tempo de falar sobre democracia e sua origem
Em tempos “incertos e estranhos” como os que vivemos atualmente, quando direitos historicamente aceitos são questionados, enquanto outras práticas, até há pouco inaceitáveis, são propostas para espanto geral, convém lembrar o que representa a democracia (como o nome diz, o “governo do povo”) em sua origem.
O fortalecimento da Atenas do século V a. C. representou uma importante guinada no desenvolvimento da filosofia, inaugurando um período que os historiadores do pensamento grego normalmente denominam Antropológico, porque representa um importante movimento: o pensamento filosófico deixava de se debruçar apenas sobre as questões da “Physis”, isto é, a natureza e seus mistérios, e passava a ter como campo de reflexão o ser humano e seus muitos aspectos.
Alguns autores também dão a esse período o nome de Socrático, porque é também o da ascensão de um dos maiores pensadores da humanidade, que inaugura uma visão da filosofia que ficaria reconhecida como “clássica”, de muita influência no modo de pensar e compreender do mundo ocidental.
A democracia foi uma dentre as muitas contribuições de Sócrates para a filosofia se destacando pelo seu conteúdo altamente reformador, que o filósofo se esforça para pôr em prática numa Atenas que vive o seu apogeu, com intensa atividade em vários campos, como o comércio, as artes e as práticas militares. Outro traço importante daquela que hoje é a capital da Grécia era a grande valorização da cultura, que levaria o período a ser conhecido como o Século de Péricles, com referência ao governante da cidade que muito estimularia a produção intelectual e artística.
É nesse cenário de intensa efervescência do pensamento que Sócrates traz para o debate a consolidação dos princípios da democracia, propondo em primeiro plano a ideia de igualdade, como um conceito atribuído a todos os participantes da “polis” (a coletividade). Mas é necessário considerar que esse “todos” faz referência apenas aos homens e adultos, únicos que no entender da época apresentavam condições de tomar as decisões atinentes aos destinos da cidade. Estavam assim excluídos os chamados “dependentes”, que englobavam as mulheres, os escravos e os estrangeiros.
A participação democrática, segundo preconizava Sócrates, deveria ser exercida de modo direto, com cada um podendo exprimir sua opinião e convencer os demais quanto à sua razão nos mais diversos assuntos envolvendo a coletividade. Naturalmente que ascensão da democracia não haveria de ser aceita sem choques com o pensamento tradicionalmente dominante na Grécia.
Como normalmente acontece, o conflito seria travado com as famílias tradicionais, grandes possuidores de terras e até então detentores do poder, cujas noções de sociedade eram provenientes da chamada Grécia Homérica, em referência às obras do grande poeta, dos quais se retiravam os valores e as virtudes a serem seguidas pelas pessoas das classes mais abastadas.
As obras épicas de Homero, principalmente a Ilíada e a Odisseia, narravam um período de aproximadamente 400 anos de história e, mesmo se tratando de obras literárias, tinham status de história pregressa da nação, e por isso serviam de base para a educação dos filhos das famílias poderosas. Elas preconizavam uma formação voltada para a força corporal e a destreza bélica, requisitos presentes em heróis épicos, como Achiles e Ulisses, que podiam dessa forma representar a Grécia nos confrontos com nações adversárias, e por sua vez eram supostamente o retrato dos valores preferidos dos deuses.
À medida que a democracia se fortalece em Atenas e as famílias até então dominantes vão perdendo poder, esse modelo vai entrando em declínio e abrindo espaço para uma outra escala de valores. Ao invés de força e coragem, o cidadão de valor é o que constrói a democracia, e para tal precisa deter habilidades como conhecimento, inteligência e oratória, requisitos fundamentais para vencer nas tribunas, onde passam a se dar os embates nacionais.
Essa transformação concorreria para trazer à tona outros personagens. Os filósofos sofistas se opunham aos antigos pensadores que se dedicavam a especular sobre a natureza. Eles pregavam uma atividade filosófica voltada principalmente para persuadir, isto é, deter a capacidade de envolver o opositor nos debates de ideias e assim impor suas visões a todos os demais cidadãos. Os sofistas começaram a ter bastante destaque pois foram sendo considerados fundamentais para a formação dos jovens, sendo frequentemente contratados pelos mais abastados para educar os filhos e prepará-los para o êxito nas arenas democráticas.
A atividade filosófica sofista encontraria seus limites exatamente em Sócrates, que entendia suas práticas como algo extremamente prejudicial porque levava os jovens a vencer a qualquer custo, aproximando-os da mentira e do erro e desviando-os do amor pela sabedoria e daquilo que o filósofo considerava a maior das virtudes, a plena identificação com o belo, o bom e o verdadeiro, noções que estariam presentes na natureza de modo absoluto, se configurando como a maior finalidade da existência. Daí a consagração da famosa frase socrática: “Conhece-te a ti mesmo”, que em sua homenagem ficaria gravada no pórtico do templo consagrado a Apolo, o deus da sabedoria.
As circunstâncias históricas e a morte heroica de Sócrates – levada a efeito pelas elites gregas, quando percebem que os jovens por ele ensinados passam a representar o “perigo” de pensar – acabariam por concorrer para o fortalecimento dos ideais filosóficos clássicos. A obra de Platão, seu mais ilustre discípulo e propagador de suas ideias, acabaria por consolidar na história do pensamento várias de suas preocupações intelectuais, como a valorização da reflexão sobre as questões éticas e políticas, a confiança no homem como ser racional, capaz de traçar os próprios caminhos, e a busca inesgotável por atingir as virtudes humanas.
Quão perto das noções propostas por Sócrates no início da democracia estamos nós no mundo e especialmente no Brasil de hoje? Os ventos da Atenas do século V a.C. ainda seriam bem-vindos para temperar o tecnológico e hiperdesenvolvido século XXI? Uma reflexão necessária que fica para iniciar mais uma semana.
Leia também: “O fecundo século VI a.C. e a interseção entre Ocidente e Oriente na filosofia”, em https://goo.gl/2QSE67
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
Deixar comentário