Cem anos de João Cabral
Esta semana João Cabral de Melo Neto, um dos grandes nomes da literatura brasileira, completaria cem anos. Nascido em 1920 o poeta ficaria famoso pelo texto racional e técnico, do ponto de vista estilístico, mas principalmente pelas temáticas que marcaram as suas obras mais conhecidas: a vida e a personalidade dos nordestinos, sejam os sertanejos ou personagens históricos. Morte e Vida Severina e O Auto do Frade são duas obras em que o escritor toca mais fundo o leitor quanto a esse tema.
A primeira narra a saga de um sertanejo em busca de melhores condições de vida, fugindo da seca, da falta de oportunidades e das injustiças sociais de um contexto marcado pelo poder desmedido dos proprietários rurais dos sertões nordestinos. No caminho, os versos simétricos do poeta colocam o leitor diante de um cenário de dor e miséria, atingindo uma gente simples, mas de fé inabalável e alegre, apesar de tudo.
Dono de uma poética que explora a literariedade sem perder o foco nas questões da vida real, João Cabral viu seu auto ser encenado tanto nos palcos quanto nas telas. No teatro Morte e Vida Severina fez história em montagem do grupo universitário do Tuca, no ano de 1965, num momento importante da vida brasileira em que as preocupações com questões sociais estavam em voga.
Alguns anos depois, em 1981, foi a vez de a Rede Globo adaptar o auto para a linguagem teledramatúrgica, numa obra muito premiada e elogiada pelos críticos. Dirigida pelo grande Walter Avancini e tendo como grande destaque a então desconhecida cantora e atriz paraibana Elba Ramalho, é até hoje considerado um dos grandes momentos da televisão brasileira. Em ambas as versões, a das telas e a dos palcos, Morte e Vida Severina é encenada como musical, aproveitando os versos simples e harmoniosos do poeta, que curiosamente não gostava de música.
Já O Auto do Frade narra os momentos que antecedem o enforcamento do Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, o frei Caneca, que no século XIX lutou pela causa do Brasil republicano, tanto na Revolução Pernambucana (1817), quanto na Confederação do Equador (1824), e passou a ser considerado uma espécie de mito para a consciência histórica dos pernambucanos, depois de executado pelo governo imperial.
O auto é na verdade um grande poema épico, muito elogiado pela crítica literária brasileira pela capacidade de recriar todo o ambiente do Recife do período monárquico, retratando desde as condições obscuras do encarceramento de Caneca até o momento capital, passando pelo misto de procissão e rito de execução com que João Cabral eterniza o momento histórico. Apesar de despertar menos interesse das artes cênicas do que Morte e Vida Severina, o Auto do Frade também fez história nos palcos, inclusive sendo premiada numa montagem de 1986, com o ator Elias Andreato.
Apesar da força dessas duas obras, João Cabral também se notabilizaria por muitos textos impressionistas, em que suas percepções dos lugares que visitou e das culturas com que tomou contato são retratadas com grande dose de beleza e sedução, seja as cidades do sertão nordestino, as capitais do litoral brasileiro ou as regiões da Espanha que tão bem conheceu em sua trajetória como membro do corpo diplomático brasileiro.
Assim, fica o registro da obra de um talentoso escritor, que muito colaborou para a compreensão do Brasil e de sua gente. Um poeta nordestino na forma, mas capaz de criar uma literatura de maior abrangência, que também englobava o nacional e até o universal. Nessa semana em que João Cabral de Melo Neto faria 100 anos se estivesse ainda entre nós, a maior homenagem é desfrutar da beleza e do talento de seus muitos poemas. Terminamos com um deles:
“E se somos severinos / Iguais em tudo na vida / Morremos de morte igual, / Mesma morte Severina: / Que é a morte que se morre / De velhice antes dos trinta, / De emboscada antes dos vinte / E de fome um pouco por dia.”
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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.