Adultização infantil

Entenda o tema, os impactos no desenvolvimento de uma criança e como pais, professores e escolas podem lidar com esse problema


Adultização infantil

Cresce cada vez mais o número de crianças que estão deixando de serem tratadas ou vistas como realmente são, para assumirem uma identidade de miniadultos com agendas lotadas, centenas de seguidores ou, ao contrário disso, acompanhando e tentando imitar os adultos nas redes sociais, nas telas da TV ou em casa, seja na maneira de vestir, maquiar, falar, se comportar e opinar sobre assuntos ligados à família e à sociedade. Mas como se relacionar com essa pluralidade social, seus impactos e os reflexos que ajudam a desencadear vários processos de adultização infantil na vida dessa garotada?  

A Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade e especialista em Neurociência Cristiane Guedes explica que a adultização infantil consiste em experiências inadequadas para o desenvolvimento da criança, que estão diretamente relacionadas com o processo de aceleração da infância e da pré-adolescência. “São estímulos a comportamentos que destoam da sua idade cronológica e emocional, promovendo a aceleração das fases do desenvolvimento infantil, sem que se tenha a vivência, por falta de estimulações adequadas para a idade. O que leva as crianças a entrarem na realidade dos mais velhos sem reservas emocionais ou sem o desenvolvimento físico e psicológico adequados para viver essas experiências que não são reais, pois são do mundo do adulto”, afirma.  

A especialista aponta ainda que a adultização infantil está diretamente relacionada à vida proposta à criança que não auxilia o seu desenvolvimento natural. Os pequenos passam a imitar atividades propostas pelos adultos sem terem recursos emocionais, criatividade ou mesmo planejamento de futuro. “São sensualizadas em demasia, o que as confunde diante das experimentações emocionais pertinentes ao seu desenvolvimento. São crianças que experienciam o apogeu de uma “carreira” promissora que só tem a duração de alguns cliques, por um curto tempo e servem de espelho para a relação que o adulto tem com a sociedade. Estão relacionados ainda  questões como vestimentas, local adequado à idade, entre outros pontos que servem de alimento emocional para o adulto”, pontua Cristiane Guedes.  

As consequências da adultização infantil

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Cristiane Guedes lembra que o significado de cognição é processar a informação. Ou seja, compreender, interpretar e elaborar um estímulo para a resposta adequada para cumprir uma tarefa. Isso levará o indivíduo a elaborar, avaliar e pensar junto as suas reservas emocionais uma solução para a atividade e interação social. “É comum observar crianças sem estímulos, desinteressadas para o convívio com outras pessoas, e isso vai se dando à medida que a criança não suporta o não. Fica mais confortável para ela se afastar do mundo e se debruçar nos jogos eletrônicos, completamente alheia às questões ao seu redor. Para a criança que não está dando conta emocionalmente de ser adulta, é mais cômodo o isolamento. Mas isso é extremamente nocivo à saúde mental”, pontua.  

Ao falar sobre os riscos dessa adultização, Jéssica Cardoso, mãe de duas meninas, pontua que, ao longo da vida, precisamos passar por várias fases que fortalecerão o nosso desenvolvimento de forma saudável para a vida adulta e que é vital vivenciarmos essa experiência sem desconsiderar cada momento. “Pular essas etapas é proporcionar uma estimulação inapropriada para a idade da criança, pois a infância é onde acontece todo o aprendizado. Acelerar isso pode estimular um desenvolvimento físico e psicológico imaturo e incompleto na fase adulta podendo resultar em uma pessoa infantilizada e com uma baixa inteligência emocional. Além disso, a criança ainda não tem maturidade para saber o que é certo e errado, podendo se tornar vulnerável a qualquer informação e situação”, orienta. 

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A psicóloga Yeda Herculano também compartilha da mesma visão e garante que esse atalho ou abreviação da infância, muitas vezes percorrido pelos pequenos, com ou sem o aval dos responsáveis, pode gerar consequências desastrosas em suas vidas adultas, como conflitos internos existenciais, intolerância a frustrações e uma sensação de vazio e incompletude constantes. “E em alguns casos irá reproduzir um comportamento infantilizado de forma descontextualizada da sua faixa etária”, ressalta. 

Internet é lugar de criança? 

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Quando falamos de jogos eletrônicos e internet, o professor Marcio Gonçalves, especialista em mídias digitais e em educação midiática, explica que esse universo digital é um dos fortes elementos nessa intensificação da abreviação infantil. Para ele, a internet proporciona o acesso à informação por meio de produtos audiovisuais que potencializam estímulos para a criança querer experimentar o que os adultos fazem. “Dessa maneira, ela é levada ao desejo de compras de coisas inapropriadas para a idade infantil”, revela. 

A especialista em Neurociência Cristiane Guedes completa afirmando que a interferência da tecnologia tem trazido para as crianças prejuízos emocionais. “É comum e natural elas usarem utensílios dos pais em atividades lúdicas e criativas. Muitas vezes imitam a professora ministrando aulas ou os pais dirigindo. Quando essas questões estão voltadas para a criatividade, são muito bem-vindas. Tornam-se nocivas à saúde mental quando são impostas e alimentadas para uma “disputa” de cliques ou seguidores. Muitos são os exemplos expostos nas mídias sociais”, explica.  

Um TikTok de exposição infantil

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Com a internet fazendo cada vez mais parte das nossas rotinas, tornou-se lugar-comum ver crianças se divertindo com as dancinhas no TikTok, enquanto muitos pais sonham e torcem para que seus pupilos viralizem e trilhem o caminho da fama. Todavia, essa exposição tem levado milhares de crianças e adolescentes a uma exibição que reforça a adultização infantil.  

Para Gonçalves é importante que se analise esse momento e não se esqueça de que uma má interpretação pode causar prejuízos irreparáveis a essas crianças. “É comum ver algumas delas sendo expostas em mídias sociais. As redes Instagram e TikTok, por exemplo, exibem muitas crianças dançando e erotizando. Pode ser que achem esses momentos divertidos, mas é importante avaliar que elas passarão de fases na vida. Dependendo do que for publicado, anos mais tarde aquele conteúdo pode ser mal interpretado ou estar fora de contexto”, adverte.  

Ambiente nocivo x ambiente saudável

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A psicopedagoga Cristiane Guedes explica que essa disputa na verdade está relacionada ao narcisismo do adulto, tornando uma imposição à realidade da criança. A frustração, nesses casos, é de extrema responsabilidade dos mais velhos. “A adultização infantil promove perdas significativas para o desenvolvimento dos pequenos. Proporcionar a eles atividades lúdicas, dedicadas ao seu crescimento individual, é de total importância para uma vida saudável. Essa questão é de responsabilidade do adulto quando oferece esse espaço nocivo para a criança”, pontua.  

Cristiane afirma que é comum, tanto na clínica quanto na escola, a criança cansada e desmotivada por não ter uma rotina adequada para o seu desenvolvimento. O que gera nela falta de humor, dificuldade de interpretar, se comunicar, interagir e de ter hábitos que sejam produtivos. “Tanto a escola quanto seus espaços de interação acabam ficando desinteressantes, promovendo para si, o isolamento. Criamos, então, crianças com dificuldade de lidar com a frustração, inadequação social, ansiedade e, o pior de tudo, tristeza”, garante a especialista. Ela orienta trabalhar nos pequenos a ideia de atuarem como autores da sua história, contemplando o seu espaço de crescimento adequado e saudável, compatível com o desenvolvimento evolutivo e criativo.  

Pais atentos desaceleram o processo

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Mas o que fazer para atenuar esse quadro, uma vez que a vida agitada de muitos pais e responsáveis quase sempre compromete os momentos de atenção e conversas que deveriam ser dedicados exclusivamente aos pequenos? De acordo com a profissional de Recursos Humanos com formação em Psicologia, Jéssica Cardoso, os pais podem abordar esse tema através de diálogos que mostrem às crianças como é importante e bom aproveitar a infância, já que que existe tempo para cada período da nossa vida, e que não precisamos antecipar nada, pois logo a fase adulta chegará. “Também é importante proporcionar um ambiente que estimule brincadeiras e tudo o que o universo infantil tem de bom a oferecer, como filmes, histórias e jogos. Vivenciar esses momentos com os pequenos pode ser ainda mais especial, pois participamos de cada etapa do seu desenvolvimento gerando conexão e boas memórias”, recomenda. 

Família, filhos e redes sociais: a conta fecha?

Em pesquisa realizada pela Consulta Brasil, 66% das crianças entre 9 e 17 anos declararam ter começado a usar redes sociais antes dos 12 anos, inclusive mentindo sobre a idade para ter acesso a um perfil. Uma mãe que preferiu não se identificar disse que só descobriu que sua filha tinha uma conta em uma rede social porque a mãe de uma outra aluna comentou com ela sobre uma postagem. “Como trabalho muito, pois sou pai e mãe dos meus filhos, acabo realmente deixando a desejar no quesito acompanhamento quanto ao uso da internet no celular”, reconhece. 

Se por um lado as crianças fazem uso dos conteúdos da internet, muitas vezes escondidas dos pais, para 51% dos entrevistados, pela Consulta Brasil, os adolescentes se abrem mais na grande rede do que com os pais. Segundo Márcio Gonçalves, cabe não somente aos professores, “mas também aos pais, ensinar aos filhos como interpretar as mensagens e conteúdos lançados nas mídias”. 

De acordo com a Psicóloga Clínica Yeda Herculano a família deve sempre incentivar a criança a viver sua infância, sem antecipações da vida adulta, estimulando brincadeiras, onde ela possa ser ativa e não só recebendo informações, “como ocorre no caso do uso da internet e telas, mas permitindo que exercite criatividade e imaginação”.  

Além disso, os pais precisam separar momentos a sós com seus filhos, pois isso ajuda no fortalecimento da relação. Reservar um tempo para brincar junto à criança, ler, conversar, fazer um piquenique e dar abraços, manter o diálogo e a empatia fará com que o amor e o carinho não faltem”, garante Yeda, ressaltando que tudo isso irá colaborar para um amadurecimento com qualidade de vida e ótimas relações no futuro. 

A importância do brincar e ser criança

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Seja para os teóricos educacionais como Vygotsky, Piaget, Montessori ou para os especialistas da psicologia, o brincar é uma das mais importantes bases para o fortalecimento cognitivo, emocional e social no desenvolvimento infantil. Pois é através da brincadeira, do lúdico, que o aprendizado é alcançado, bem como a imaginação e a autonomia. Precisamos brincar para aprender, frisa a profissional de Recursos Humanos com formação em Psicologia Jéssica Cardoso, pois, segundo ela, é por meio dessas práticas que exploramos o mundo e nos preparamos para a fase adulta. “Ser criança é ter a possibilidade de vivenciar as melhores coisas do mundo dentro da nossa imaginação”. 

 A Psicóloga Clínica Yeda Herculano acrescenta que os vários momentos que uma criança passa interagindo com seus brinquedos são fundamentais para o seu desenvolvimento. Segundo ela, é por meio do brincar que os bebês descobrem o mundo e entendem como ele funciona. “É dessa maneira que são trabalhados os aspectos cognitivos, sociais e afetivos dos pequenos, o que contribui para o processo de socialização, propiciando oportunidades de realizar atividades coletivas ou individuais de uma maneira livre. A criança é um ser em aprendizado e absorção permanente. E a partir do brincar vai construindo experiências e se relacionando com o mundo de maneira ativa”, alerta.  

 Herculano também chama a atenção para o outro lado da moeda, apontando que não ter uma infância adequada pode, sim, influenciar numa vida adulta com muitas dificuldades, medos e inseguranças. Isto porque as experiências da infância estão diretamente ligadas à estruturação psíquica, e qualquer alteração nesse sentido poderá afetar a capacidade de se desenvolver uma boa inteligência emocional. 

 A coordenadora da Educação Infantil no Instituto Menino Jesus, Luana Soares de Souza, reforça que as crianças amam brincar. “Independente do contexto socioeconômico em que vivem, amam interagir, imaginar e criar. E o brincar possibilita essa vivência, por isso a comunidade escolar deve possibilitar e incentivar esta prática”, explica. Em relação à adultização infantil na escola onde trabalha, ela conta que já presenciou alunos com preocupação de emagrecimento e vaidade excessiva. “Cabe a nós, professores e escola, ter essa percepção ativa para oferecer o acolhimento devido e conseguir retirar os pesos desnecessários. Nada melhor do que permitir à criança ser leve”, pontua Luana. 

Como a escola pode enfrentar esse problema?

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No cenário de estímulo à adultização infantil é muito comum a criança apresentar baixa autoestima, pois nem todos os amigos da escola estão no mesmo processo. A psicopedagoga explica que esse sentimento vem por ela não se adaptar à realidade infantil devido às exigências ofertadas pelo mundo adulto, com o qual a criança ainda não tem reservas emocionais para lidar. “Frustra-se com facilidade diante de qualquer insucesso, seja por notas ou mesmo por interação social da qual ela “não faz parte”, por estar projetada em sua vivência a realidade adulta”, afirma Cristiane.  

Para a especialista, é fundamental que as escolas fortaleçam diante das famílias as etapas do desenvolvimento infantil para a formação cognitiva, psicológica e da personalidade. As fases evolutivas desse crescimento constituem experiências e vivências para elaborações emocionais que a criança utilizará na entrada da adolescência e para estabilização no mundo adulto. “Ao não vivenciá-las podem ocorrer as crises de identidade e, por conseguinte, alto grau de estresse e depressão. Insatisfação constante com uma vida que ela não construiu”, ressalta.  

Educação para as mídias

Por ser um portal da hipervalorização da aparência e do consumismo exacerbado, a mídia abre fendas para que a garotada tenha cada vez mais comportamentos adultos. É o que mostra a pesquisa Crianças Digitais, em que 49% dos brasileiros dessa faixa etária usaram um dispositivo eletrônico pela primeira vez antes dos seis anos de idade e 72% ganharam seu primeiro celular antes de completar 10 anos.  

Para o professor Gonçalves, a escola pode contribuir para desacelerar esse processo de maciça dependência digital, através do ensino de conteúdos voltados à educação para as mídias, como forma de possibilitar a análise crítica das informações que circulam nas redes. “Aulas sobre consumo na internet, fake news, desinformação e propaganda, por exemplo, levam os estudantes a entender como se dá a produção de mensagens no jornalismo, na publicidade, no marketing e nas estratégias de relacionamento e engajamento nas mídias sociais”, assegura Gonçalves, lembrando que os professores são mediadores dessa articulação e podem influenciar posturas críticas diante da informação que adultiza a criança. “Aulas que ensinam como analisar as mensagens de mídia devem despertar nos jovens o entendimento do que a informação quer dela. É uma excelente oportunidade para a formação de cidadãos que tenham um olhar mais agudo e consciente”, conclui. 


Por Antônia Figueiredo e Jéssica Almeida

Fontes: Cristiane Guedes é mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Psicopedagoga, Especialista em Neurociência e Psicanálise Clínica | Jéssica Cardoso é profissional de Recursos Humanos com formação em Psicologia | Luana Soares de Souza é coordenadora da Educação Infantil | Marcio Gonçalves é professor especialista em mídias digitais e em educação midiática | Yeda Herculano é psicóloga Clínica. 


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