Construção de Brasília, a capital no coração do Brasil
Quem vê os traços de arte, beleza e arquitetura da capital brasileira talvez não saiba que, antes de ocupar a fértil imaginação de gênios como Oscar Niemeyer e Lucio Costa, Brasília já fazia parte das cogitações de importantes nomes do pensamento e da intelectualidade brasileira. Um dado histórico pouco mencionado quando se fala desse assunto remete à Inconfidência Mineira as primeiras ideias referentes à fundação de uma nova capital. A cidade escolhida seria a própria São João del Rey, cenário da primeira conjuração brasileira, e junto com essa alteração os rebelados tencionavam instalar ali a primeira universidade do país.
Dessa forma, a noção de uma nova capital já nascia com o objetivo de ser um centro de poder distante do litoral – onde então viviam as classes que faziam a interseção entre a América e a Europa – e no qual a população espalhada pelo restante do território pudesse ser de alguma forma contemplada. Alguns historiadores também apontam que a ideia chegou a ser levantada inclusive pela Família Real, quando de sua chegada ao Brasil em 1808, ao se deparar com um Rio de Janeiro que causaria péssima impressão à primeira vista, sendo de imediato considerado um lugar impróprio para receber a nobreza de Portugal.
José Bonifácio foi um dos que chamaram a atenção para a ideia da nova capital, quando décadas mais tarde revelaria a importância do erguimento de uma grande cidade em região até então completamente erma e afastada dos centros mais populosos do país. Em um documento editado em Lisboa no mesmo ano da conquista da nossa soberania em relação a Portugal, o Patriarca da Independência não apenas menciona esse propósito como também sugere a localização geográfica da nova cidade: “No centro do Brasil entre as nascentes dos confluentes do Paraguai e Amazonas, fundar-se-á a capital desse reino com a denominação de Brasília”.
Um ano depois, ao presidir a primeira Assembleia Constituinte de nossa história, Bonifácio volta a tocar na questão colocando-a entre suas propostas para o país ao lado de temas como o fim do tráfico negreiro e a realização de uma reforma agrária. Desta vez menciona as vertentes do rio São Francisco e inclusive dá a opção de um outro nome: Petrópole.
A interiorização do Brasil já tinha sido abordada alguns anos antes por Hipólito da Costa, que nas páginas de seu “Correio Braziliense”, editado em Londres, chamava a atenção para os benefícios desse procedimento, provavelmente se baseando na experiência da capital estadunidense, que ele bem conhecia, cuja criação teria trazido avanços inquestionáveis ao desenvolvimento do país. Os dois, Hipólito e Bonifácio, conviveram na Europa, sendo conhecidas as afinidades entre suas ideias para o Brasil.
A nova capital não saiu do papel naquele momento, mas não deixou de figurar entre as cogitações de importantes formadores de opinião no Brasil. Adolfo de Varnhagen, por exemplo, historiador e diplomata, também daria sua contribuição ao debate numa carta direcionada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1849, na qual reunia argumentos defendendo a criação de uma capital no interior do país. Ele também daria o seu palpite quanto à localização, situando uma área no interior de Goiás que havia visitado. A região mencionada, a meio caminho das águas dos rios são Francisco, Amazonas e Prata, seria muito próxima do local em que de fato Brasília viria a ser construída mais de cem anos depois.
A República que se instalou já no final daquele mesmo século também não ignorou a ideia e ainda deu um primeiro passo para a sua concretização. A constituição homologada em 1891 estabelecia que uma área de aproximadamente 14 mil metros quadrados passaria para o domínio da União, ficando reservada para que lá se construísse a nova capital. Ainda sob o governo Floriano Peixoto seria criada a “Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil”, que realizou estudos em vários campos, como a geologia, a botânica e a meteorologia, ficando estabelecidas as bases a partir das quais seria erguida a capital.
O próximo passo importante veio já no Estado Novo, mas de uma forma indireta. É que a partir de 1940 tem início a famosa Roncador-Xingu, expedição liderada pelos irmãos Villas-Boas, que devassaria uma vasta região do Brasil, que compreendia o cerrado indo até a Amazônia, revelando um país ignorado pela maioria dos brasileiros. A expedição acabou servindo como uma espécie de complemento para o trabalho que o marechal Cândido Rondon já havia empreendido no início do século. A experiência dessas duas heroicas marchas pelos sertões do Brasil expôs a premência de que o país – cuja população em 1940 era de 43 milhões de pessoas, a maioria vivendo próxima ao litoral – finalmente levasse adiante o projeto da nova capital.
Assim, em 1956, tão logo assume a presidência, Juscelino Kubitchesk abre o concurso nacional para o Plano Piloto de Brasília. A nova capital seria erguida sob o símbolo da renovação e da modernidade, criada para representar um novo projeto de integração nacional e marcar o objetivo de ocupar e explorar riquezas de uma imensa parte do território até então quase completamente em estado natural. Construída em tempo relativamente pequeno, Brasília em parte satisfaria o ideal de levar desenvolvimento ao interior do país e, no bojo desse espírito desenvolvimentista, seria construída quase ao mesmo tempo a rodovia Belém-Brasília, que ligaria o novo centro de poder à Amazônia, nossa região então mais desafiadora.
Há também um aspecto místico relacionado à construção da nova capital, que teve início com o suposto sonho profético relatado por Dom Bosco, um padre italiano que em 1883 descrevia uma experiência mística em que se via transportado para a América do Sul e, passando por vários pontos do continente, relataria ter vislumbrado uma “terra prometida”, de riquezas inconcebíveis. O religioso, que nunca tinha vindo ao Brasil, chega a mencionar, na carta que foi escrita contando o sonho, a localização geográfica do lugar que visualizava, situando-o entre os paralelos 15 e 20, exatamente o local onde a cidade seria levantada.
Essa suposta profecia do religioso salesiano esteve presente no imaginário referente a Brasília desde os primeiros momentos das atividades da sua construção, tanto que uma das primeiras edificações, de 1957, foi uma capela em forma de pirâmide que acabou sendo consagrada a Dom Bosco, a esta altura já canonizado pela igreja e mais tarde estabelecido como copadroeiro da cidade. Assim, talvez não seja casual o interesse de tantos místicos por Brasília, que veio mais tarde a abrigar uma série de instituições de caráter místico-religioso, como o Vale do Amanhecer e a Cidade Eclética, além das sedes de praticamente todos os credos religiosos brasileiros.
Questões espirituais à parte, o fato é que Brasília acabaria sendo cenário de episódios dolorosos para a nação, como o período a morte do quase presidente Tancredo Neves e a imensa vinculação das administrações brasileiras que lá se desenvolveram com atividades escusas e corrupção. Se é fato que a capital federal sugere para a maior parte dos brasileiros atuais o encontro de tudo o que há de pior na vida pública nacional, por outro lado pode ser interessante não esquecer as palavras de JK, que afirmou em seus escritos sobre seu maior feito como chefe da nação: “o significado de Brasília para a civilização ocidental será avaliado apenas daqui a duzentos anos”. Se o presidente que viabilizou a tão propalada capital está correto só o tempo vai dizer. Enquanto isso, Brasília continua sendo para todo o povo brasileiro aquilo que comunica o codinome que a acompanha desde o início: a capital da esperança.
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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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