Yacob e Amo, os africanos que propuseram ideias iluministas
O pensamento iluminista é considerado um dos momentos mais marcantes para a formação do mundo ocidental, que resultou numa série de noções que hoje constituem questões de alcance universal, como a valorização da ciência e da razão e a posição privilegiada de itens como igualdade e democracia, dentre outros. Fruto direto da modernidade, assim como a revolução científica, as grandes navegações e o Renascimento, o iluminismo trataria de fixar na galeria universal do pensamento nomes como Rousseau, Voltaire e Locke, e outros antes e depois deles, como Descartes, Espinosa e Kant. Todos reconhecidos como referências filosóficas, que são até hoje estudados e relidos nas universidades de todo o mundo. E, claro, o símbolo maior do iluminismo foi a Revolução Francesa, de 1789.
Mas as possibilidades de conhecimento e informação que se abriram a partir das sociedades de comunicação no século XXI tem nos permitido o acesso a autores e obras que até então se mantinham na obscuridade, mas que podem ter sido introdutores de importantes conceitos filosóficos muito antes dos pensadores citados acima. É o caso por exemplo de dois pensadores africanos, um anterior e outro contemporâneo aos baluartes do iluminismo, cujas obras só recentemente têm chegado ao conhecido dos leitores e pesquisadores.
Um deles é o etíope Zara Yacob, morto em 1692. Mesmo nascido numa família de agricultores no norte de seu país, teve contato através dos estudos tanto com a cultura copta, desenvolvida no Egito no início do cristianismo, quanto com o catolicismo e a tradição ortodoxa, além é claro dos ensinamentos do Islã, referências que seriam fundamentais nas ideias que viria a defender. Contou também em sua formação com estudos de línguas, retórica, poesia e pensamento crítico.
A formação diversificada seria responsável por alguns posicionamentos controversos para a época, como a afirmação de que nenhuma religião é superior a outra, o que lhe renderia perseguições com os governantes de seu país, que haviam se convertido ao catolicismo e, seguindo as práticas ainda muito presentes na Europa, empreenderam uma política de caça às bruxas aos pensamentos divergentes. Foi exilado em outra parte do país, vivendo quase como um eremita, que Yacob produziu grande parte de seus escritos nos quais começam a se vislumbrar as ideias que só no século seguinte seriam veiculadas na Europa.
Nos textos que escreveu por insistência de um discípulo e que são basicamente a fonte que se dispõe para conhecer seu pensamento ressaltam ideias que nos são muito familiares adquiridas pela via dos iluministas europeus. Além de pregar a subjetividade da religião, Yacob tece na obra muitas críticas a seus contemporâneos que utilizam métodos de conhecimento como oráculos e astrólogos, seguindo praticas ancestrais que de pouca credibilidade desfrutam em comparação com razão científica, que ele destaca como superior, em consonância com Descartes e seus contemporâneos na Europa.
A defesa da igualdade como valor universal também aparece no seu pensamento, quando afirma por exemplo que nenhuma diferença há entre homem e mulher, além de ser um crítico ferrenho contra uma instituição muito presente tanto na Europa como em seu continente de origem, a escravidão, afirmando que nenhum homem ou povo foi criado para viver sob arbítrio de outros, sendo privado assim da liberdade. Apesar da valorização da razão e do conhecimento científico e de avançar sobre as noções de direitos civis mais tarde consagradas em autores como Rousseau e Voltaire, Yacob não chegaria a romper com certas ideias, por exemplo, como a da existência de um deus como o criador de todas as coisas, aliás como a maioria dos filósofos europeus, de Descartes a Kant, apenas com poucas exceções.
Interessante observar que, enquanto Yacob produziu seu pensamento na clandestinidade, vivenciando a perseguição e até o preconceito por algumas de suas ideias (chegou a casar-se com uma mulher abaixo de sua posição social e declarou publicamente a igualdade entre eles no casamento), vários iluministas festejados não confirmaram suas crenças em suas vidas pessoais. Vemos, por exemplo, Kant afirmar a suposta pouca aptidão das mulheres para as atividades do intelecto, enquanto Locke, o pai do liberalismo, pregou a intolerância contra os ateus e o “todos os homens são iguais” que ele admite dos antecessores iluministas não foi estendido aos escravos (aliás ele era acionista do comércio transatlântico negreiro).
O outro pensador africano que em muitos pontos antecipou o iluminismo europeu foi o ganês Anton Amo. Nascido mais ou menos um século antes de Yacob, foi provavelmente sequestrado na infância em sua tribo natal para ser vendido como escravo, como era relativamente comum na época. Teria assim chegado à Holanda onde acabou tendo acesso a uma excelente educação, incluindo letras clássicas, além de uma profunda base em filosofia. Chegou a lecionar em universidades europeias como a de Halle, Alemanha. Um percurso intelectual mais técnico e acadêmico que o de Yacob, portanto.
Mas assim como este, Amo dedicou parte importante de sua obra para desqualificar a escravidão, tendo sido talvez o primeiro na Europa a propor através de trabalho acadêmico um debate acerca dos argumentos empregados para justificar o cativeiro. Principalmente direcionou suas reflexões contra a Igreja católica, instituição íntima das principais coroas imperialistas e mantenedoras do comércio de seres humanos, que em parte sustentava um discurso legitimador da escravidão. Amo questionou a supremacia da teologia católica, afirmando, assim como Yacob, que outros sistemas, como o pagão, por exemplo, também poderiam ser considerados.
Os trabalhos clássicos dos iluministas europeus mantinham estreita relação com a ideia da separação entre mente e corpo proposta no pensamento cartesiano. A afirmação da supremacia da razão e da ciência, como fontes privilegiadas de estabelecimento da verdade, parte do princípio de que a mente, entendida como algo à parte das sensações e impressões provenientes dos sentidos, seria a mais segura fonte do conhecimento.
Enquanto autores iluministas clássicos, como Voltaire e Rousseau, por exemplo, pouco questionavam essas premissas vindas do cartesianismo, Amo promovia em seus trabalhos acadêmicos profundos debates nos quais a separação entre mente e corpo era esmiuçada, inclusive com acréscimo de referências filosóficas oriundas do pensamento africano, como a tradição filosófica akan – povo ancestral de Gana e portador de um sistema milenar de conhecimento e explicação da vida e do universo – e o idioma nzema (língua materna do autor), nas quais esse tema apresentado por Descartes já era abordado muitos séculos antes de ser matéria de reflexão dos europeus.
As obras dos dois autores africanos são ainda descobertas recentes, pouco ainda sendo produzido por críticos literários ou historiadores de ideias, mas abrem uma porta para uma outra forma de contar a história de uma filosofia tão influente no mundo ocidental como foi o iluminismo. Permite questionar não só pioneirismo dos filósofos europeus na questão, como também o sentido de suas reflexões, já que, como vimos aqui, nem sempre foram praticantes das ideias que ajudaram a divulgar, muitas vezes submetendo-as a interesses alheios ao campo do pensamento e da ciência.
Mas principalmente ajuda a desmontar a ideia, com tanta força propagada desde o início dos tempos modernos, da inferioridade cultural dos africanos. A história e as obras de Amo e Yacob são uma confirmação de que, ao contrário do cenário de terra arrasada com que a África foi todo o tempo pintada no mundo ocidental, o continente, desde tempos imemoriais, foi sempre composto por povos e civilizações nos quais o pensamento e a busca do conhecimento estiveram entre as prioridades. Não há dúvida que o futuro revelará novas obras e autores do continente, que poderão oferecer outros pontos de vista com os quais explicar e renovar a vida e as ideias, assim como supostamente têm feito os ocidentais.
Leia também: “Como povos africanos e orientais ensinaram a Europa a inventar o ocidente”, em http://bit.ly/2wbKqXX
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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