A filosofia de Maquiavel


Niccolo Maquiavel nasceu em 1469 em Florença, atual Itália. Filho de pais aparentados com a nobreza florentina, de origem toscana, mas que acabaram perdendo poder aquisitivo com as transformações econômicas do início do século XVI. Seu pai, Bernardo, desempenhou vários cargos de nomeação em cidades e província na região de Florença, de modo que Niccolo desde cedo conviveu com a proximidade do poder e das disputas políticas.

Apesar de não se dispor de dados muitos ricos sobre a vida de Maquiavel, é quase certo que tenha recebido uma educação de boa qualidade para os padrões da época, apesar de bem inferior à de outros expoentes do humanismo renascentista, tendo formação básica em latim e grego, depois ingressando na Universidade de Florença, o que lhe permitiu ainda jovem assumir funções de diplomacia em sua cidade. Nesse trabalho aproximou-se de nobres e governantes podendo aí desenvolver suas impressões a respeito de questões políticas.

Em torno dos 40 anos de idade começa a escrever a parte mais importante da sua obra, incluindo O Príncipe, seu livro mais conhecido, por produzir as principais reflexões políticas que seriam fundamentais no exercício do poder no decorrer do Renascimento e principalmente para os séculos seguintes com o declínio do poder monárquico na Europa. Maquiavel é considerado um dos pensadores que mais contribuíram com os conceitos modernos sobre poder e política.

A grande novidade instalada por “O príncipe”, de Maquiavel, é que na primeira vez, dentro da tradição do pensamento político, as ideias oriundas de uma visão cristã de mundo foram deixadas de lado na hora de determinar condutas. O pensador florentino estabeleceu com clareza a existência de duas visões éticas. De um lado, uma noção proveniente do cristianismo, segundo a qual a mentira e a astúcia são vistas como negativas e portanto vedadas. De outro, a ideia de que tais procedimentos podem ser aceitos, se utilizados por um “bom motivo”, o que incluía gerir o estado e permitir que suas finalidades fossem alcançadas.

Para Maquiavel, todos os procedimentos que visassem beneficiar a coletividade passam a ser vistos como éticos ou morais. Perdem essa característica os atos de caráter egoísta, mesmo que pareçam dentro da tradição ou sejam entendidos como éticos. Dentro dessa perspectiva, o príncipe (o que se refere a qualquer governante) fica “desobrigado” de ter que atuar dentro de preceitos baseados em virtudes como a justiça, a bondade e a misericórdia, se estiver em jogo o bem da coletividade. Daí a frase clássica a ele atribuída de que “há crueldades mal usadas e bem usadas”.

No capítulo XVIII do livro, aparece uma das sentenças mais conhecidas de Maquiavel, aquela que diz que “os fins justificam os meios”. Para ele, normalmente somo julgados pelos resultados que obtemos e não pelos meios que empregamos. Assim, o príncipe poderia ter entre suas ações tentar controlar o estado a qualquer custo, mesmo que isso implicasse agir de forma tirânica ou faltar com ações como supor a inocência por trás de cada homem ou só usar a força mediante a evidência concreta do delito. Mas o importante a destacar é que, mesmo agindo dessa forma se assim exigirem as circunstâncias, o príncipe não deve deixar de parecer aos súditos como um portador das virtudes superiores que eles esperam num governante.

É dessa forma, passando aos indivíduos a ideia de agir como um verdadeiro “emissário divino”, que o príncipe deve se impor adquirindo assim a legitimação para agir, ainda que sem os atributos éticos ou cristãos. Em alguns casos, quando não há como conciliar a aparência e a prática, um governante pode mesmo assumir a face mais agressiva e firme, desde que fique bem explícito aos súditos que tais ações são inevitáveis para garantir a harmonia e a segurança do estado.

Um dos mais interessantes argumentos empregados por Maquiavel está em torno do que ele chama de “verdade efetiva das coisas”. Segundo essa noção, todo um imaginário referente às formas de fazer política, baseado em valores cultivados desde a Antiguidade clássica (como a ideia do “rei filósofo”, o mais capaz de governar por ser aquele que melhor pode apreender a verdade), deve ser relegado ao segundo plano. O que deve assim entrar no jogo político são as condições que objetivamente se colocam como reais na espécie humana, como a ambição, a vaidade e os interesses de ordem material.

Um outro ponto decisivo é que Maquiavel não leva em conta certa tradição, que crê que o poder pode ser exercido de maneira harmônica, com as partes sempre se estabelecendo através de consenso. Ao contrário, a liberdade de um regime político está em abrigar as distinções entre os indivíduos, incluindo os atritos e disputas pelo poder. É nessa visão que para Maquiavel pode ser lícito ao príncipe até provocar ou disseminar a divisão, visando com isso acumular poder para surgir como o elemento capaz de reunir as melhores condições de ver suas teses postas em prática.

Por argumentos como esse é que a obra de Maquiavel pode ser entendida como antecipadora do liberalismo moderno, na medida em que aposta numa visão que, longe de partir de um suposto predomínio de uma verdade ou de uma orientação, prefere admitir a existência de um estado formado pela variedade de interesses e objetivos, o que faz da política e de seus métodos uma ciência que deve ser dominada por todos aqueles que se aproximem do poder.

Apesar de entrar para a história como um pensador que ajudaria a consagrar meios pouco éticos de exercer o poder, Maquiavel teve a sua obra reconhecida e elogiada por grandes filósofos modernos, como Espinoza e Diderot. Além de grande teórico da filosofia política e do estado republicano, também deixou uma vasta produção em outros campos do conhecimento, como a história (em 1520 passou a ser considerado o mais importante historiador de Florença), o teatro e a filosofia clássica.

Maquiavel morre no ano de 1527 na mesma cidade em que nasceu. Apesar do muito prestígio, o pensador termina seus dias com a imagem vinculada ao despotismo e à tirania, devido ao fato de ter produzido seu trabalho com o apoio dos Medici no poder em Florença. Com a queda dessa dinastia, Maquiavel acabou sendo reconhecido como um resultado negativo daquele poder. As gerações seguintes, porém, não só fizeram justiça à excelência de sua obra como se basearam largamente em seus escritos para pensar a política e o poder ao longo da modernidade.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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