A filosofia positivista na república brasileira
O positivismo foi uma doutrina filosófica de grande relevância ao longo do século XIX. Não demorou a chegar no Brasil e seduzir as elites culturais com suas propostas baseadas na fé no progresso do homem e na observação da natureza sem intermediários, como a religião e as tradições. Especificamente esteve na base da série de acontecimentos políticos que culminaram com a deposição da monarquia e a instalação da república.
Para entender bem como a doutrina desenvolvida pelo francês Auguste Comte teve seu papel nas transformações políticas entre nós, vale a pena refletir sobre as correntes abrigadas no positivismo que receberam adesão de intelectuais brasileiros. Talvez a mais inusitada seja a chamada ortodoxa, que teve nas figuras de Miguel Lemos e Teixeira Mendes seus principais representantes. Se trata de uma visão desenvolvida pelo filósofo francês a partir de 1845, como um desdobramento das ideias iniciais do positivismo.
É a fase mística, que culminaria na chamada “Religião da Humanidade”, ou Igreja Positivista, aqui fundada pelos dois intelectuais acima citados. Está relacionada à ideia de que o positivismo seria a etapa derradeira da evolução do espírito humano, quando então haveria condições de se estabelecer uma doutrina puramente natural, científica e racional, que exatamente por esses atributos seria capaz de englobar toda a humanidade, sem divisões, disputas ou diferenças.
Essa “religiosidade positivista” seria encarada por vários intelectuais brasileiros como uma espécie de delírio, sendo suficientes, para eles, os avanços no campo da metodologia do conhecimento que predominaram na filosofia de Comte até 1845, quando o filósofo começa a enveredar pelas questões “místicas”. Assim se articulava a corrente conhecida como Ilustrada, que teve entre nós adeptos como Alberto Salles e Pedro Lessa. Segundo essa visão, já tendo sido superadas as fases teológica e metafísica, cabia agora educar o espírito humano no conhecimento científico. Dessa cultura adviria o que se entendia como “a verdadeira ordem social”, sem aquilo que os partidários compreendiam como embustes provocados por doutrinas praticadas em séculos anteriores.
A corrente política foi expressa principalmente pelas ações do advogado gaúcho Julio de Castilhos, que chegou a escrever em 1891 uma constituição para o seu estado, refletindo os princípios de experimentação científica e predomínio inquestionável da razão presentes na metodologia do positivismo, aplicado diretamente a um instrumento político, o que implicou uma série de conflitos com lideranças locais, fortalecidas desde a Revolução Farroupilha, e também com autoridades eclesiásticas.
Por fim, a corrente militar, liderada pelo professor da Academia Militar Benjamim Constant e também apoiada no positivismo anterior a 1845, ou seja, colocando para o segundo plano as implicações místico-filosóficas aventadas por Comte e mantendo o foco na valorização do cientificismo e na construção de uma sociedade a ser conduzida unicamente pela razão pura. Essa vertente sairia vitoriosa com a instalação de uma república que não só seria instalada mediante um movimento militar, como também manteria a marca castrense ao longo dos primeiros anos de instalação do regime.
O predomínio da vertente cientificista do positivismo no pensamento dos que ajudaram a instalar o regime republicano caiu sob medida num contingente militar que, se sentindo desprestigiado pela mentalidade predominante na monarquia, buscava se impor perante a sociedade. Isso se daria principalmente por uma corporação que buscaria se modernizar apostando firmemente em conhecimentos tecnológicos e numa visão de sociedade que, da mesma forma, teria de caminhar na direção das grandes conquistas do tempo, como a industrialização e o progresso técnico.
Apesar da vitória desse projeto que colocava em segundo plano as muitas questões humanistas levantadas pela filosofia positivista, alguns elementos dessa visão também estiveram presentes e deixaram consequências. O positivismo integral (isto é, a parte metodológica e também a filosófico-espiritual) acabaria por se expandir por todas as províncias brasileiras, instalando uma cultura de valorização de um humanismo que acabaria por se refletir em obras jurídicas, tratados políticos, textos filosóficos, criações literárias e artísticas, como se pode perceber em profusão ao se analisar o panorama da produção intelectual da segunda metade do século XIX.
Inclusive um dos pontos negativos foi a pouca participação de figuras de grande valor cultural nas estâncias de decisão do projeto republicano. Gente como o próprio Miguel Lemos, que se absteve de qualquer atuação direta nos movimentos de instalação da república, por acreditar que esse regime naturalmente se imporia às consciências, como um processo natural, fruto da disseminação do conhecimento positivo, daí não haver a necessidade de ações de cunho marcadamente político.
Um dos sinais mais evidentes da vitória do positivismo metodológico sobre suas variantes místico-filosóficas na república brasileira foi a própria construção da bandeira nacional. A inscrição “Ordem e Progresso” que os republicanos determinaram que aparecesse na tarja branca que corta o globo azul do estandarte é na verdade uma espécie de emenda a uma frase originalmente cunhada pelo próprio Auguste Comte: “O amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. O positivismo que cria uma religião que elege a natureza como deusa e por isso entende o amor como a maior finalidade foi compreendido por alguns como incompatível com a ideia de conhecimento extraído unicamente da razão.
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.