Quem tem medo da vacina?


Quem hoje passa pelo centro do Rio de Janeiro, turistando pela Cidade Maravilhosa ou participando de uma agradável corrida como a do Circuito Rio Antigo, por exemplo, não imagina como ficaram aquelas ruas repletas de prédios históricos durante alguns dias do ano de 1904. Tudo porque o governo resolveu tomar algumas medidas referentes à saúde pública. Pois foi assim que ocorreu uma das maiores revoltas urbanas da história do Brasil. O que poderia parecer aos olhos atuais uma incompreensível reação da população ganha sentido quando se examina o contexto no qual o governo tentou empreender as medidas de caráter “saneador”.

A capital brasileira de então tinha uma população de pouco mais de 800 mil habitantes, e o fato de ser a cidade mais desenvolvida e rica do país não impedia que fosse acometida por uma infinidade de surtos de doenças, como tifo, tuberculose, febre amarela, peste bubônica e até enfermidades próprias de outras regiões do país, como a malária, presença constante na região amazônica. A grande causa naturalmente era a péssima situação de insalubridade em que vivia a capital, mesmo em áreas mais valorizadas como o centro da cidade.

Um fator adicional colaborou para colocar a questão das más condições de higiene em evidência. O grande programa de reforma urbana empreendida pelo prefeito da capital Pereira Passos, a partir de 1903, abrangeu o centro da cidade, que passou por diversas etapas de urbanização modernizadora, com a construção de vias, praças e edifícios. O projeto tornou necessário afastar da região central uma grande quantidade de pessoas, trabalhadores pobres, que viviam das atividades portuárias e ali habitavam cortiços, cabeças de porco e pequenas comunidades erguidas sobre terrenos impróprios, sem saneamento básico ou coleta de lixo.

Esse processo seria marcado por medidas autoritárias e polêmicas, como entrar à força em residências para extinguir possíveis focos de doenças e até pagar para quem apresentasse a autoridades de saúde ratos mortos. O “pé na porta” que marcou muitas incursões a moradias populares, desrespeitando privacidades e não raro prendendo pessoas, acabou por criar um clima de desconfiança e hostilidade com relação ao governo, por parte de uma faixa da população já alarmada pelas medidas de remodelação urbana, que na prática a expulsava de seus locais de origem.

A situação de descontentamento ganha contornos de revolta civil quando se inicia o programa de vacinação obrigatória da população contra a varíola. O prestigiado médico sanitarista Oswaldo Cruz foi revestido de superpoderes no que se referisse a medidas de saúde pública, o que muitas vezes representava verdadeiras operações em comunidades carentes, onde não faltavam a truculência policial e desrespeito a direitos civis.

A decisão do médico de tornar obrigatória a vacinação caiu como uma bomba no cotidiano da capital da república, até porque a comprovação de que tinha se submetido ao procedimento passou a ser pré-requisito para o exercício de muitos direitos, como se matricular em escolas, trabalhar em um estabelecimento e até se casar.

O rastilho que causou a explosão da revolta foi a prisão arbitrária de um estudante que protestava contra a medida obrigatória. Outros descontentes se juntaram a manifestações em vários pontos do centro da cidade, e não tardou para que muitos conflitos entre a população e tropas oficiais se espalhassem, inclusive atingindo bairros próximos.

A situação de caos motivou obviamente o aumento das ações de violência e facilitou a disseminação de boatos que só mais acirravam a disputa, como a de que a vacina era na verdade um artifício para exterminar a grande população afrodescendente que vivia na cidade e principalmente em áreas do centro, como a lendária Praça Onze.

Uma importante fonte de informação sobre os dias de conflito na então capital brasileira foram os artigos e crônicas do escritor Lima Barreto. Em sua obra “Diário íntimo” ele relataria os muitos excessos da parte da polícia, que passou a prender suspeitos e recolhê-los à força em delegacias, onde sofriam humilhações públicas e violências físicas.

Alguns foram mandados para a Ilha das Cobras, uma fortaleza situada na Baía de Guanabara, onde tradicionalmente se mantinham presos que precisavam ser punidos com forte isolamento, como Tiradentes, por exemplo, que lá tinha ficado antes de sua execução. O saldo dos conflitos ficaria em torno de mais de cem feridos e trinta mortes, quase mil pessoas acabaram presas e houve até deportação para o Acre de quase 400 outras. Vista com olhos de hoje, poderíamos dizer que se tratou de muito barulho por nada, já que as vacinas se incorporaram naturalmente ao cotidiano de todos os brasileiros.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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