São Jorge pelo mundo
O mito de São Jorge, o santo guerreiro da Capadócia, extremamente popular no Brasil, rodou mundo até chegar até nós. Inúmeras foram as manifestações de devoção às virtudes do santo, a partir do século seguinte à sua morte, o V da era cristã, quando já havia várias igrejas e conventos a ele dedicados.
A canonização ocorreu no ano de 494 e, em virtude de não haver fatos inquestionáveis que atestassem existência e os feitos de São Jorge, o Papa Gelasio I justificou o processo declarando-o entre aqueles “cujos nomes são reverenciados pelos homens com justiça, mas cujos atos são conhecidos apenas de Deus”. Uma espécie de eufemismo pra dizer que a fé popular no santo era tão intensa, que a falta de comprovação histórica para sua existência passava a um plano secundário.
Na história britânica, por exemplo, desenvolveu-se uma estreita relação entre São Jorge e a cultura do país. No início do século XII o exército inglês, preparando-se para atacar Jerusalém, monta acampamento na terra em que São Jorge teria sido sepultado, e os sucessos daquela empreitada promovem grande identificação com o santo. No século XIV é criada a Ordem dos Cavaleiros de São Jorge pelo rei Eduardo III da Inglaterra, e no século seguinte a data da comemoração do santo torna-se feriado no país.
No século XVIII o Papa Bento XIV o declara oficialmente o padroeiro da nação. A dinastia Tudor, de Isabel I, reconhece no santo grande apoio e, finalmente, vemos ainda a influência do culto a São Jorge na própria bandeira do país, com uma cruz a ele atribuída, lembrando a condição de mártir.
O advento das cruzadas, obviamente por seu caráter bélico, vivifica o mito de São Jorge, e é principalmente através delas que o santo ganha popularidade no Ocidente. Várias milícias de cruzados o elegeram como guia dos seus exércitos. O lendário Ricardo Coração de Leão, líder da primeira grande cruzada, o institui como padroeiro. O heroísmo de São Jorge o identifica cada vez mais com as práticas de guerra, o que faz com que seja ligado a diversas representações.
Certa tradição faz referência ao fato de a lenda do dragão ser uma transferência para um personagem cristão do culto pagão de Marte e Ares, que também costumavam enfrentar e derrotar criaturas monstruosas. Segundo esse pensamento é que aparecem as representações medievais de São Jorge portando armaduras. Em outras, o traje do santo é identificado com o dos cruzados, com uma grande cruz ao peito. Mais tarde, é incorporado ao imaginário das cavalarias e passa a ser um importante referencial para o herói típico desse gênero literário.
A fama dos cavaleiros ocorre em função do estado em que a maior parte da Europa se encontrava em torno do século XI. Não haviam ainda se formado os estados-nações e a organização geopolítica se caracterizava pela autonomia das cidades, que viviam em constantes desavenças entre si, protegendo-se umas das outras através de grandes fortalezas e esquemas permanentes de vigilância. O estado beligerante era pois a condição normal da Europa medieval.
Nesse cenário, aqueles cidadãos que se mostravam dispostos a proteger os limites de suas localidades e garantir a honra dos seus compatriotas eram extremamente valorizados e constituíam inclusive um padrão para os mais jovens. Eram os famosos cavaleiros, que mais tarde, quando a Europa já havia se organizado no protótipo do que seriam as futuras nações, permaneceram no imaginário popular inclusive dando origem aos famosos romances de cavalaria, que persistiram populares até o romantismo.
Não seria absolutamente o santo matador de dragões que iria ficar de fora desse contexto. Assim, aquela Europa medieval, católica e guerreira representa o auge da popularidade de São Jorge. As guerras de um modo geral serviram de grande veículo de difusão do culto ao santo, sendo ele considerado o patrono das forças de combate de vários países. Até mesmo na Primeira Guerra Mundial, já no século XX, havia uma grande circulação de medalhas do santo, que eram dadas principalmente a enfermeiros e irmãs de caridade que se ocupavam a velar pelos feridos nos combates.
Mas o culto ao combatente da Capadócia não vive apenas de evocar as suas virtudes militares. Muitas expressões de fé religiosa e sentimento místico foram produzidas em várias partes do globo onde tornou-se conhecido. Há relatos de que, desde o século VI, há uma igreja dedicada a São Jorge, provavelmente em Lidia, cidade natal de sua mãe, que seria uma espécie de quartel-general da devoção ao santo e onde estariam os seus restos mortais. O que alguns estudiosos afirmam é que esse templo foi destruído por volta do ano 1010 e reconstruído no século seguinte por cruzados. Ainda no século XII nova destruição, desta vez pelas tropas de Saladino, o temível líder do Islã, que lutava para manter Jerusalém fora do controle dos cristãos. Seguindo a própria lógica da valentia e coragem do santo a igreja seria mais uma vez erguida, e é hoje visitada por fiéis do mundo inteiro.
Quando falamos do mundo inteiro não exageramos, pois, além de difundido por toda a Europa, chegou a vários pontos do continente asiático, principalmente nas proximidades de Israel, onde seu túmulo virou objeto de culto. Assim, em nações como Jordânia, Egito e Síria existe o culto a São Jorge, não obstante serem essas nações hoje predominantemente muçulmanas. A imensa popularidade do santo na Europa obviamente é transplantada para a América, onde ganha um novo vigor e colorido próprio.
A arte não podia naturalmente estar alheia à devoção a São Jorge. São inúmeras as representações artísticas, principalmente nas artes plásticas, que retratam o mito e os feitos do santo, constituindo mesmo uma das mais abundantes fontes de conhecimento e popularização de seu culto. Um importante quadro do pintor renascentista Rafael Sanzio, por exemplo, pintado no século XVI, se encontra no museu do Louvre em Paris.
Artistas como Carpaccio e Donatello também retrataram o culto a São Jorge em suas telas. Na quase totalidade de expressões artísticas mostrando o santo predomina a sua imagem em luta contra o dragão, sendo este quase que um traço inseparável na imagem que a maioria dos fiéis faz do seu santo de devoção. O que muda são aspectos secundários, como a vestimenta ou o aspecto do animal ou ainda o objeto usado para matá-lo, ora a espada ora uma lança.
A devoção dos ingleses pelo santo esteve presente também na obra daquele que é considerado o maior escritor de língua inglesa, William Shakespearre. Na peça Henrique V, o dramaturgo mostra a presença da devoção ao santo nas fileiras de combate inglesas durante a Guerra dos Cem Anos. O culto a São Jorge só começa a declinar com o advento da Reforma Protestante, que divide a Europa e abole a devoção aos santos nos países que aderem à nova concepção do cristianismo.
Com a menor frequência de conflitos bélicos e o advento cada vez mais crescente do cientificismo, a devoção foi deixando o espaço dos diversos setores das sociedades e se concentrando estritamente nas manifestações da religiosidade. O exemplo mais claro disso é a própria Inglaterra, onde nas últimas décadas o tradicional culto ao santo tem perdido força, havendo inclusive iniciativas mais tradicionalistas, interessadas em reavivar o culto ao padroeiro do país. Afinal, não há como sufocar a força de um mito como o construído em torno de São Jorge, o combatente da Capadócia.
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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