As escolas dos jesuítas e o princípio da educação no Brasil – Parte II
Continuando o artigo iniciado na semana passada, vamos refletir sobre as heranças da proposta educacional dos jesuítas que mais objetivamente marcaram e estão ainda presentes na mentalidade educacional brasileira. Um dos aspectos que mais diretamente salta aos olhos é a valorização da quantidade sobre a qualidade na construção dos currículos escolares.
Os programas de ensino dos colégios jesuítas continham um número consideravelmente grande de matérias e disciplinas, o que conduzia a uma situação na qual os alunos, aplicados em reter tantos “conhecimentos”, naturalmente se dedicavam menos a entendê-los com profundidade e olhar crítico. Trocando em miúdos, é nessa proposta curricular que se desenvolve a famosa “decoreba”, através da qual muitas gerações de brasileiros se escolarizaram, muitas vezes sob a sombra da palmatória ou dos castigos, corporais ou não, para que o conteúdo não deixasse de ser retido.
Esse método estava naturalmente apoiado nos objetivos contrarreformistas adotados pela Companhia de Jesus. Convictos de que o caminho para a salvação passava pela adoção dos princípios prescritos pela fé católica, os jesuítas procuravam rejeitar em seus ensinos tudo o que pudesse ameaçar o caráter de “verdade absoluta”, que estaria presente nos ensinamentos da Igreja. Um desses elementos “malditos” era a curiosidade, um atributo intimamente relacionado à ciência e à filosofia.
O apego aos dogmas católicos, a valorização do pensamento de antigos Pais da Igreja como Santo Agostinho e a rejeição a qualquer método de aprendizado em que a discussão e o debate fossem praticados eram características de uma Igreja aplicada em combater o adversário protestante que, contrariamente, ao traduzir as escrituras paras as línguas praticadas pela população, estimulava os fiéis a externarem pontos de vista e a amadurecerem visões mais racionais dos textos religiosos.
A condenação da curiosidade e o pouco estímulo ao debate ficariam como duras marcas para a educação brasileira, que até hoje são fatores que colocam o país em evidente desvantagem em comparação com outras nações. Em um mundo cada vez mais movido a invenções tecnológicas e em soluções que permitam a competitividade do que se produz, o Brasil acaba se tornando dependente das descobertas de outros países. Enquanto a educação na Ásia e na Europa, por exemplo, estimula a busca por criações e inventos, a nossa ainda se ressente da ausência da curiosidade e da “sede de saber” com que o ensino nos colégios jesuítas procurava manter os alunos fiéis aos preceitos da fé católica.
A organização que os jesuítas imprimiam em suas unidades escolares é outra sombra que ainda não se conseguiu reformular na educação brasileira. É importante considerar que a rotina de funcionamento e procedimentos dos colégios da Ordem eram estabelecidos na Ratio Studiorum, uma espécie de manual pedagógico que foi concebido para ser adotado no ensino jesuítico onde quer que ele ocorresse, levando muito pouco em conta as realidades específicas de cada lugar.
A Ratio determinava praticamente tudo, do currículo do colégio ao comportamento a ser adotado por alunos e professores em sala de aula, sendo permitidas apenas pequenas adaptações, como foi, no caso do Brasil, a possível dispensa das aulas de grego para alunos de seminários que, em contrapartida, se aplicavam em estudar a língua-geral, para satisfazer a necessidade do projeto catequizador jesuíta.
Esse sistema apresentava a desvantagem de ignorar a experiência do professor na sala de aula. No rígido regime pedagógico, cabia ao docente apenas cumprir o currículo e “cobrar” dos alunos a aquisição dos pontos previstos no programa de cada série. É possível perceber como isso ecoa negativamente na educação brasileira atual, quando especialistas apontam a descontinuidade das filosofias de ensino, que ocorrem a cada mudança de governo, como um dos grandes problemas a impedirem o avanço do país nesse campo.
Isso significa que a cada uma dessas mudanças é jogada fora a vivência que os professores experimentam com os alunos. Dificilmente consultados quando da elaboração dos sistemas de ensino pelo Brasil, os docentes ainda são vistos como meros supervisores de conteúdo e executores de diretrizes vindas “de cima”. Enquanto os países que mais avançaram em educação investiram fortemente nas capacidades dos professores, no Brasil eles ainda estão entre as classes menos valorizadas dentre as chamadas profissões liberais.
Um outro problema que os especialistas apontam na educação do Brasil também está relacionado à visão de ensino dos jesuítas: o tradicional desinteresse dos pais dos alunos pelo que ocorre na escola. Como única instância portadora de cultura e instrução no Brasil Colônia, não havia como discutir ou contestar que o papel de educadores coubesse aos religiosos. Mesmo os filhos de colonos ou até de nobres pouco dispunham de fontes de aprendizado além daquelas representadas pelos padres.
As mulheres eram em sua grande maioria analfabetas e mesmos os homens que se aventuraram pela colônia pouco iam além da capacidade rudimentar de ler e escrever, possuindo pouca ou nenhuma cultura além da tradição hebraico-cristã aprendida da própria Igreja. Imagine então a situação das crianças indígenas ou africanas que frequentavam as salas de ensino jesuítas.
Num quadro como esse a formação cultural das crianças ficava exclusivamente a cargo de religiosos. Do aprendizado das primeiras letras até a formação profissional nas idades mais avançadas, passando por noções de comportamento e religião, tudo cabia e passava pelas mãos dos padres-professores. Os pais pouco tinham que fazer com relação a questões envolvendo educação. Essa ausência ainda hoje dos responsáveis da rotina da educação tem, assim, suas raízes nos primeiros séculos de educação no Brasil.
E estamos falando de um dos fatores que mais reconhecidamente influenciam na educação. O melhor exemplo é o da Coreia do Sul, um dos países que conseguiram um caráter de excelência em seu sistema educacional num espaço relativamente curto de tempo. Ali, segundo pesquisa realizada, a participação sistemática dos responsáveis foi apontada como a principal responsável pelo bom desempenho dos alunos e consequentemente da alta qualidade do sistema de ensino. Sem negar nossas raízes culturais, não custa nada aproveitar as experiências bem-sucedidas de outros países.
Leia a primeira parte desse artigo.
Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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