Reformas Educacionais na Europa cristã
Os estudos da história da mentalidade ocidental colaboraram na solidificação da ideia de um Renascimento ocorrido em torno do século XV, sucedendo a um longo período veiculado como de grande ocaso do pensamento. A eclosão de gênios que se tornariam consagrados, no campo das ciências e das artes principalmente – como Da Vinci e Shakeaspeare, por exemplo –, colaboraria para reiterar a noção de que o ocidente voltava a florescer na retomada das criações do mundo antigo, soterrando um tempo de trevas e obscuridade, capitaneadas sobretudo pelo predomínio do discurso religioso.
No entanto, a análise do que ocorreria de produção intelectual e artística nesse intervalo de tempo entre o mundo da Antiguidade e o suposto renascimento revelaria que, muito ao contrário do que ficaria registrado no chamado senso comum, os anos da chamada Era Medieval também não deixaram de expressar importantes episódios em que o gênio humano se manifestou. Esses momentos têm sido denominados por estudiosos da cultura ocidental como “Renascenças Medievais” e revelam a eclosão de visões que ainda hoje repercutem no conceito de conhecimento que adotamos.
A primeira dessas renascenças ocorreu no limiar entre os séculos VIII e IX, com a ascensão de Carlos Magno, inaugurando a chamada dinastia carolíngia, e postulando a recriação do Império Romano – dilacerado em torno de quatro séculos antes – sob a bandeira do cristianismo. Esse caráter de projeto religioso presente nos objetivos do líder franco contaria com amplo apoio da Igreja da época, que desejava que o prestígio eclesiástico se apoiasse sobre um reino temporal forte e sólido. A trajetória de Magno se mostrando com força imperialista suficiente para reunir todo o mundo cristão da época, inclusive a antiga força do cristianismo no Oriente, representado por Bizâncio, devolveu o prestígio a uma igreja que vinha perdendo poder frente a remanescentes da nobreza romana, que ainda conseguiram manter riquezas e influência mesmo com a fragmentação da grande potência da Antiguidade.
A corte vai à escola
Essa forte presença da temática religiosa e especificamente cristã seria profundamente influente no sentido que Carlos Magno imprimiria às possessões que dominava. Admirador do pensamento de Santo Agostinho e se crendo imbuído de uma determinação divina, o imperador almejava implantar em seus domínios a “Cidade de Deus”, conceito que o pensador da Igreja do século V havia popularizado no mundo cristão de então. É dentro desse espírito reformador que Carlos Magno vai implementar uma série de transformações que elevariam o nível cultural, incrivelmente baixo naquele momento.
Para tal várias medidas de caráter educacional vão ser empreendidas, como a distribuição de bolsas de estudos, o incentivo às práticas das chamadas artes liberais (retórica, oratória, música etc.) e os primeiros passos do que seria um sistema educacional universalista, dentro obviamente do que isso podia representar para a época. O ponto de partida das ambições pedagógicas na corte de Carlos Magno foram os estudos da linguagem. O soberano defendia que o falar polido agradava a Deus e no plano humano impedia enganos oriundos da incompreensão.
Daí um forte investimento no ensino do latim, com vistas a revitalizar a até então língua da cristandade, já há muitos séculos dominada com facilidade apenas pela comunidade eclesiástica, mas bastante castigada no mundo profano dando margem a um estágio já bastante avançado do desenvolvimento das chamadas línguas vernáculas. O próprio rei foi alvo dessa retomada da latinidade linguística, se dispondo ele mesmo a aprender o idioma, que pouco conhecia até atingir o trono. Também estendeu o estímulo aos estudos a seus descendentes, o que repercutiria em toda a sua corte, começando a romper com a situação que até então predominava, na qual a maior parte dos nobres sequer era alfabetizada.
Carlos Magno também recorreu a redutos de intelectualidade presentes em seus amplos domínios e que contrastavam com o baixo nível predominante da Europa ocidental. Assim, aproximou-se por exemplo dos pensadores ligados à Academia Palatina, estudiosos de autores romanos clássicos, como Cícero e Virgílio, atestando que também a renascença carolíngia buscaria a revalorização da Antiguidade greco-romana, que não era, como se pode ver, uma prerrogativa apenas dos renascentistas do século XV.
Outros núcleos de pensamento espalhados por outras porções da Europa foram valorizados pelo projeto de Carlos Magno, como as obras do bispo cristão Isidoro, que haviam reformulado o pensamento cristão na Espanha, e os pensadores religiosos irlandeses e anglo-saxões, cujos escritos trouxeram para o centro da cristandade uma escola de pensamento produtiva e vigorosa desenvolvida nas regiões das antigas Gálias. Tudo isso seria responsável por um vibrante reflorescimento das artes e do pensamento na Europa cristã, a partir do nível cultural elevado que acabou se estabelecendo à sombra da corte do rei carolíngio.
Um outro renascimento brindaria a cristandade europeia aproximadamente três séculos depois da ascensão de Carlos Magno, agora motivado por profundas modificações no panorama socioeconômico do Velho Continente a partir do início do século XII. Trata-se de um momento marcado por um grande incremento na produção agrícola, que resultaria no aumento do poder e da riqueza dos senhores feudais, que passaram a reivindicar certa autonomia em relação à monarquia, ao mesmo tempo em que fortaleciam suas cortes. Esse processo marcaria o aparecimento da cultura cavalheiresca e trazia consigo expressões culturais como o amor cortês, que aos poucos foi substituindo um padrão de classe superior marcado pela habilidade bélica por outro caracterizado pelo amor às letras e às artes.
Ascensão das universidades
Em meados do século a situação ganharia outro contorno: o fortalecimento do comércio, fomentado pelo crescimento das cidades e pela atividade diplomática que levaria à abertura de novos mercados, sobretudo com o chamado Oriente. Como consequência, aos poucos as atividades lucrativas se deslocam do campo para os espaços urbanos, cada vez mais aumentando a importância de grandes centros comerciais e culturais que se firmaram como polo maior da produção de riquezas.
Como resultado dessa urbanização da vida em várias regiões da Europa, há o surgimento de uma classe de colaboradores de caráter eminentemente técnico, fundamental para dar conta das questões jurídicas e monetárias que cada vez mais se fazem presentes. Esse processo altamente mobilizador do conhecimento passa a exigir uma resposta das universidades que, até aquele momento uma exclusiva iniciativa da igreja, seriam de alguma forma solicitadas a colaborar para o avanço daquela nova ordem social. Surgem desse modo as primeiras instituições de ensino superior autônomas, algumas delas leigas, que começaram a direcionar seus focos de estudo para áreas não tanto relacionadas com a temática filosófico-religiosa e mais voltadas para conhecimentos que se tornavam cada vez mais relevantes, como o direito e a economia.
O resultado de todo esse processo foi o incremento do capitalismo, até esse momento sempre limitado por questões éticas e morais que se fortaleciam abrigadas no discurso religioso. Mesmo assim, o pensamento cristão e a própria igreja se beneficiariam consideravelmente desse crescimento do mundo comercial e monetário. Um exemplo disso seria a própria inserção, na teologia católica, da figura do Purgatório, uma espécie de terceira via em opção à dicotomia céu/inferno até então predominante.
Ele aparece como uma importante alternativa para um mundo no qual a possibilidade de conquista de bens terrenos se torna cada vez maior, inclusive com a ampliação de práticas altamente condenadas pela igreja, como a usura, sempre presente em cenários capitalistas, seja como fonte de lucros ou como motor da produção de riquezas. Como o Purgatório podia ser alcançado por meio da oração e dos atos religiosos de quem continuava na terra, os apaniguados do capitalismo europeu do século XII acabariam por movimentar uma gigantesca indústria de doações e missas, voltadas para “salvar” a alma culpada pela valorização das posses materiais de ser condenado ao suplício eterno.
Também não se pode esquecer que a renascença que se estabelece na Europa cristã do século XII seria responsável por uma das mais importantes mudanças na teologia católica e na própria filosofia, com a ascensão do pensamento de são Tomás de Aquino, inaugurando uma nova fase do pensamento e destronando a poderosa influência que o pensamento de Santo Agostinho tinha deixado na cristandade desde o século V.
Os resultados dessas duas renascenças ocorridas no seio do mundo medieval seriam certamente uma importante plataforma da qual os renascentistas do século XV – que entrariam para a história como os responsáveis por “desabilitar” o mundo medieval – desfrutariam para estabelecer as bases das grandes transformações no que hoje entendemos por Ocidente, ocorridas a partir do momento que se convencionou chamar de Modernidade. Apesar do esforço de desacreditar os séculos de Idade Média (foram responsáveis inclusive pelo termo “Idade das Trevas”), não deixaram de contar com o que lá ocorreu para construírem a sua própria visão de mundo.
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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.
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