O “Index” do século XXI


Em 1559 a Igreja Católica instituiu o “Index Librorum Prohibitorum”, que ficaria conhecido como Index, a lista de obras que as autoridades eclesiásticas consideravam impróprias ou contrárias à fé cristã. O documento teve 32 edições, que foram reeditadas ao longo de quase quatro séculos, com a sua última relação publicada em 1948. Oficialmente perduraria até 1966 e teria entre seus censurados nomes consagrados da arte e do conhecimento, como Descartes, Espinosa e Balzac.

Mas mesmo em tempos em que supostamente a liberdade de expressão é reconhecida como um valor universal, tendo como mote mais atual o conhecimento sem peias veiculado pela internet, talvez esteja sendo construído, ainda que de forma sutil, o que poderia ser visto como uma variante do Index ou como um Index do século XXI.

Uma edição do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, lançado pela editora Garnier no início do século XX traz ao final um glossário de aproximadamente 50 páginas. Esse apêndice era destinado a permitir que os leitores aproveitassem melhor as inúmeras referências espalhadas pelo texto, que se referiam a temáticas variadas. Um acervo que abrangia citações de clássicos da literatura universal, personagens do teatro greco-romano, passagens de escrituras das mais antigas tradições religiosas, trechos em outros idiomas, tratados de filosofia e episódios de história geral, que talvez abranja algo em torno de 7 milênios da cultura das civilizações humanas.

Um procedimento literário comum em vários outros autores da literatura universal do século XIX. Tais procedimentos no momento das opções estéticas por esses escritores naturalmente encontravam respaldo na expectativa dos leitores, dispostos a serem convidados ao domínio de referências culturais muito além de seu tempo e espaço. Isso sem falar no próprio perfil intelectual dessas figuras produtoras de literatura.

Fica patente a diferença de formação em gente como o próprio Machado de Assis, mas também outros, como um Lima Barreto ou um José de Alencar, em cujas obras se acha uma infinidade de conhecimentos e saberes, que são empregados paralelamente à temática aparentemente “principal” de suas obras. Uma verdadeira lavada quando comparamos com muitos autores campeoníssimos de venda e de prestígio cultural e midiático de hoje, que são teoricamente seus sucessores no papel social e cultural de produzir literatura.

Além dessa variante de censura a tantos conhecimentos anteriores produzidos pela humanidade, com o “sumiço” dessas referências dos textos contemporâneos, há ainda um outro fator de agravamento dessa lacuna, que é a sua apreciação pelos canais atuais de disseminação do conhecimento, principalmente aqueles que se apresentam na grande oferta de conteúdo presente nos meios de comunicação.

Através de questões atuais, de suposto interesse público, muitas dessas milenares tradições culturais nos são apresentadas por meio de “formadores de opinião” que de fato não foram formados naquelas temáticas que pretensamente analisam. Um bom exemplo são as informações sobre elementos da cultura e religiosidade muçulmanas que consumimos pela via desses produtores de conhecimento. A presença de graves questões da geopolítica atual envolvendo países islâmicos tem tornado necessárias explanações sobre as visões de mundo e nuances culturais dos povos formados sob essa matriz cultural, o que tem ocorrido a partir de ângulos adotados preferencialmente pelo olhar da chamada cultura ocidental.

Os consumidores dessas informações tendem a se sentir preenchidos do que “precisam saber” e raramente vão sentir falta de uma abordagem aberta e proponente como a que seria veiculada pela própria natureza da linguagem poética, literária ou filosófica, que constitui o ofício do escritor. Pior, devidamente abastecidos, renunciam a ser eles próprios os produtores de conhecimento e saber, porque não se sentem necessitados de buscar, por exemplo, o contato direto com as obras fundamentais das grandes culturas e religiões da humanidade.

Diante desses fatos, cabem algumas perguntas referentes ao que hoje se entende como produção literária. Dá pra imaginar propostas semelhantes em autores contemporâneos? Se acaso houvesse opções estéticas nesse sentido elas seriam bem recebidas pelos leitores? A formação atual do público leitor permitiria que ele embarcasse em tais propostas literárias? A resposta, única obviamente, para essas questões tomos sabemos.

Numa visão do conhecimento como a que temos hoje, não há espaço para explorar com profundidade o acervo das criações humanas. Milênios de experiência das civilizações deixam assim de estar disponíveis para a grande maioria das pessoas. Um consumidor do conhecimento propagado pelos atuais meios de difusão, há menos que tenha tido uma formação ímpar para os padrões atuais ou no caso de direcionar-se para uma área específica de saber, jamais terá acesso, de forma crítica, à maior parte do que o intelecto humano produziu.

Por que mudanças nesse sentido? De onde partem os critérios que determinam o que serve ou não serve como conhecimento? Quem decretou que as referências utilizadas fartamente pelos autores até a pós-modernidade passaram a ser desnecessárias e portanto podem desaparecer da produção intelectual e consequentemente da formação educacional?

A partir dessas considerações, não é possível que estejamos diante de um autêntico Index do século XXI? Os autos de fé, as fogueiras das vaidades, a censura aos produtores de conhecimento divergente da religião desapareceram do horizonte de nossas informações. Não há, para explorar a imagem do conhecido romance de Umberto Eco, nenhum fanático colocando veneno nas pontas das páginas que folheamos. Mas será que deixou de haver uma “autoridade” forte o suficiente para determinar o que pode e o que não pode ser conhecido? Essa é uma reflexão necessária num mundo que parece tão impregnado da ideia de que somos livres para fazer o que quisermos.

Sobretudo quando percebemos que os mesmos tempos que teoricamente estão permitindo a difusão do conhecimento em grande escala têm tido que conviver com o retorno de incríveis manifestações de retrocesso, como o recrudescimento de visões como racismo, sexismo, intolerância religiosa, destruição ambiental, ameaças de guerras mundiais e aumento de violência, que pouco nos têm deixado diferentes daqueles que até há bem pouco utilizávamos como modelo de ignorância e bestialidade (dos quais queríamos distância): o homem das “trevas medievais”.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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