A origem das relações humanas no Brasil


Pode até soar como exagero, mas não é absurdo dizer que a família brasileira começou a ser desenhada muito antes da chegada dos europeus à América, mais precisamente no século XII. Foi nesse período que através de mercadores árabes e com colaboração das cruzadas o açúcar passou a ser conhecido na Europa. A chegada desse produto foi muito impactante para vida de quem podia adquirir o então valiosíssimo produto. Isso porque, além de oferecer um novo sabor à alimentação, adoçando a vida do Velho Continente, como diria Gilberto Freyre, o açúcar também ofereceu uma importante contribuição para o fabrico de medicamentos, além de permitir conservar outros alimentos por um tempo muito maior.

 

Essas novas facilidades fariam com que os preços do produto fossem exorbitantes, transformando-o numa iguaria que só podia ser consumida pelos muito ricos. Reis e nobres, naturalmente. Há documentos do século XIV que relatam testamentos que brindaram pessoas queridas com o estoque de açúcar de um rico proprietário. As primeiras tentativas de alterar a situação altamente elitista do produto não tardariam a aparecer. Uma delas viria do Infante Dom Henrique, de Portugal, que tentou implantar a cultura da cana-de açúcar na Ilha da Madeira, conseguindo um relativo êxito. Dali o destino seriam as colônias lusitanas em outras partes do mundo.

 

Algumas décadas depois das primeiras tentativas, a cana encontraria no nordeste da colônia portuguesa na América situação climática altamente propícia para seu cultivo em larga escala. Nascia assim uma das instituições mais características do tipo de sociedade que se organizaria nas possessões portuguesas do lado de lá do Atlântico: o engenho. A partir do empreendimento nas zonas da mata do nordeste brasileiro o açúcar foi se popularizando à medida que a produção cada vez mais farta permitia a redução dos preços. A colônia portuguesa na América entra definitivamente no mapa do comércio internacional, e entre nós são fundadas as bases a partir das quais praticamente todas as relações sociais se estabeleceriam.

 

Autores como Sérgio Buarque de Holanda destacaram a propriedade rural brasileira a partir de três importantes características, a monocultura, a utilização de grandes glebas da terra para a produção e o estabelecimento ali de uma organização basicamente patriarcal, fundada no poder quase ilimitado do dono do latifúndio. Essa combinação daria origem a uma ordem social que acabaria por penetrar toda a estrutura do tecido social brasileiro. Depois de certo tempo os engenhos de cana-de-açúcar passaram de um empreendimento comercial a um verdadeiro cenário de relações sociais, depositário de tudo aquilo que mais tarde viria a ser a sociedade brasileira.

 

Os proprietários de engenho, em muitos casos sujeitos rudes, que se aventuraram em outro continente por total falta de oportunidades e condições de enriquecer em sua terra de origem, desfrutavam, a partir de certo momento, de verdadeiro status de nobres no Brasil. Dispunham de poderes quase ilimitados sobre suas possessões, não raro com extensões de cidades. A estrutura hierárquica que o colonizador já havia conseguido organizar pela colônia em praticamente nada os atingia, numa extensão de poder que quase sempre extrapolava a propriedade e se exercia sobre regiões inteiras com suas instituições, cargos e pessoas.

 

Com o passar do tempo eram na prática o ponto central de decisões, com o qual a própria coroa muitas vezes preferia dialogar ao invés de simplesmente fazer imposições, como seria em tese sua prerrogativa como possuidor legal da colônia. Ali se inicia o amplo poder que ainda hoje vemos particulares exercer sobre o país, ao largo de governos, poderes institucionais e da própria vontade da maioria, como se poderia esperar que fosse em uma democracia.

 

Naquela vasta extensão do engenho de exploração açucareira também seria desenhado o modelo de familiarização predominante entre nós. A figura patriarcal do proprietário das terras encarnava a própria ideia de liderança paterna à qual todos deveriam obedecer, à maneira do “paterfamilias” na Roma antiga. Todos no sentido exato do termo, bastando apenas estar de alguma forma atrelado à propriedade. A igreja era um bom exemplo. Instalados em capelas normalmente construídas e mantidas pelos senhores de engenho, os representantes da fé dominante exerciam sua atividade e executavam os pressupostos da igreja mas apenas até o ponto em que essas deliberações não se chocassem com ações do proprietário. O resultado disso foi uma igreja que ficaria marcada por uma ampla tradição de subserviência e omissão diante de desmandos e práticas nada cristãs muitas vezes levadas a cabo pelos senhores, como o adultério, o justiçamento e a exploração cruel de outros seres humanos.

 

O poder “familial” do senhor de engenho se exercia sobre uma verdadeira legião de pessoas, que se iniciava na família consanguínea e se estendia a agregados, afilhados, prestadores de serviço e até aos escravos. Esse sistema que por um lado representaria o poder de vida e de morte e inclusive o de decidir o destino de seres humanos, redundando em situações muitas vezes cruel, por outro também deu margem a toda uma cultura de relações pessoais, baseada em proximidades e afinidades, que acabariam sendo uma espécie de nota dominante para se ter acesso a qualquer coisa no Brasil. Afinal, “cair nas graças” de figuras tão poderosas quanto os senhores de terra dentro de seus domínios significava muitas vezes o cultivo minucioso e hábil de relações humanas, algo que na prática não era vedado nem aos mais deserdados personagens do Brasil colônia, como os pobres e até os cativos.

 

A amplitude do poder das propriedades rurais açucareiras também resultaria em boas oportunidades para alguns segmentos, como foi o caso de profissionais que puderam se especializar no trabalho prestado no engenho. Carpinteiros, pedreiros, criadores de engenhoca, mestres no manejo dos produtos extraídos da cana e até artistas muitas vezes figuravam entre os agregados do engenho, ali vivendo e se mantendo tendo o seu trabalho totalmente encampado para as necessidades da propriedade e da família patriarcal. Inclusive os escravos se beneficiariam dessa possibilidade e muitos tiveram condição de desenvolver habilidades que não raro lhes garantiam uma vida melhor, prestígio e proteção diante dos muitos desmandos e crueldades que muitas vezes predominaram na relação entre senhores e escravos nos engenhos brasileiros.

 

O trabalho envolvendo os escravos na rotina do engenho foi sem dúvida um capítulo à parte na história das formas de produção de riquezas no Brasil. Isso porque o processo todo exigia um nível de atividade simplesmente alucinante. Em épocas como a das colheitas, por exemplo, um engenho podia funcionar por até 20 horas por dia, num trabalho disciplinado e rígido, controlado pela força dos feitores, que não raro levava os cativos (e também aos poucos trabalhadores livres que participavam da produção) ao desfalecimento ou até à morte em pleno campo de trabalho. No expediente da produção açucareira se formou aquilo que levaria Darcy Ribeiro a afirmar que a herança colonial do Brasil era a de “queimar gente como se queima carvão”, situação que ainda hoje preside muitas das relações entre patrões e trabalhadores entre nós, mesmo com a existência de leis destinadas a coibir a exploração.

 

Os engenhos de cana seriam, nos dois primeiros séculos de colonização, talvez a instituição que mais concorreu para o estabelecimento de relações sociais no Brasil. Cenário de histórias, dramas e vivências que moldariam em muitos aspectos o caráter brasileiro. Seu declínio a partir da concorrência com outras praças que passaram a produzir açúcar e depois com o aparecimento das riquezas do ouro convergiu naturalmente para mudanças importantes na estrutura social e econômica do país, que aos poucos foi se afastando de suas referências mais primitivas no mundo colonial. Mas as marcas deixadas por essa singular forma de forjar relações e estabelecer laços que foi a cultura dos engenhos de cana-de-açúcar ficariam solidamente impressas no DNA do povo brasileiro, com todos os seus prós (se é que havia) e contras.

 

*A ilustração desse artigo é o engenho de cana, no olhar do artista plástico Militão dos Santos.


Por Sandro Gomes | Professor, Escritor, Mestre em Literatura Brasileira e Revisor da Revista Appai Educar.


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