A espiritualidade celta: o cristianismo místico e singular nos confins da Europa

espiritualidade celta
“São Francisco com os Animais”, de Lambert de Hondt (1620 – 1655).

 

Com a derrocada da porção ocidental do Império Romano, mudariam de maneira significativa as estratégias de propagação do cristianismo ao longo do continente europeu. A igreja de base romana havia se configurado como uma instituição fortemente baseada em espaços urbanos, sempre mantendo em regiões mais afastadas de grandes cidades uma menor ação catequética, o que daria margem para a sobrevivência de muitas crenças e práticas religiosas por parte de povos pouco atingidos pela mensagem cristã. Sem o apoio do estado romano a atividade eclesiástica teve de buscar outros meios de expansão, o que faria através de muitas iniciativas missionárias, que teriam como alvo os povos naquele momento menos abastecidos da presença cristã. É nesse contexto que as afastadas terras insulares da Irlanda e outros pontos ao norte da Grã-Bretanha são apresentados às ideias propostas por Jesus. Como se tratavam de povos que sequer tinham sido romanizados, a ação de catequese teve de ser desenvolvida de maneira gradual, preservando muitas práticas religiosas locais. O resultado dessa conversão vagarosa, já que não se podia mais contar com a força avassaladora do estado, como aconteceu em outras partes da Europa, foi um cristianismo singular, repleto de conceitos místicos já admitidos pelos povos de origem celta que compunham a maioria das tribos que viviam naquela região.
 
Uma interessante contingência cultural favoreceu o estabelecimento do catolicismo naquela parte do continente. É que o sistema de organização em dioceses, tradicional na cultura da igreja, viria a ser bem aceito pelos grupos celtas que se cristianizavam. Apesar de não existirem em seus agrupamentos grandes cidades como havia no continente, o que inviabilizava o estabelecimento de grandes dioceses, seduziria o temperamento celta o caráter monárquico das instituições católicas. A ideia de religiosos agrupados em torno da autoridade de um líder (um abade, entendido como uma espécie de pai adotivo) era bastante conforme a certos costumes celtas, o que permitiu um florescimento relativamente rápido de núcleos católicos, principalmente na Irlanda e no sul do País de Gales.
 
No século V grande parte das terras habitadas por povos de origem celta já contava com comunidades cristãs. A prerrogativa de acatar a liderança dos líderes religiosos levaria a uma interessante diversidade de crenças e práticas religiosas entre os vários núcleos cristãos, já que desfrutavam do direito de estabelecer cultos e liturgias. Isso permitiria a presença de práticas místicas originárias de tempos muito anteriores à chegada da mensagem da igreja, o que incluía a sobrevivência de referenciais da antiga mitologia celta e principalmente da tradicional religiosidade dos bardos e dos druidas, figuras sempre muito prestigiadas no mundo celta. Dos poetas da tradição bárdica viria uma das mais originais contribuições dessa cultura para a história do cristianismo: os belos poemas de louvação e exaltação dos poderes e da beleza da natureza, aspecto básico da antiga religião celta, se encontravam agora com o universo das ideias propostas nos evangelhos.
 
Da combinação das referências religiosas cristã e celta nasceriam algumas ideias bastante renovadoras em relação à tradição católica dos primeiros séculos. Uma delas é a noção de uma espiritualidade fortemente centrada na força da criação. Louvar e se rejubilar diante das expressões da natureza era, na visão dos cristãos celtas, uma das mais importantes maneiras de glorificar a Deus. Tais práticas se destacariam fortemente dos costumes da igreja em outras partes da Europa, nas quais o contato com a divindade pressupunha o ambiente dos mosteiros e dos templos católicos. Ao invés da penumbra dos conventos, um cristianismo ao ar livre em meio às cores e formas do mundo natural. Ao contrário do que predominava na igreja como um todo, onde a força das ideias platônicas tendia a estabelecer a supremacia das coisas espirituais sobre as materiais, os cristãos celtas fundiam a experiência dos sentidos em contato com a natureza com um evento de fortalecimento da condição espiritual.
 
Esse espírito do cristianismo celta levaria muitos religiosos a encetar uma grande tarefa missionária pela Europa, pois em nada lhes contrariava a vida ao ar livre e a convivência com espaços bucólicos ou mesmo a companhia de animais. São emblemáticas nesse sentido as palavras de Columbano, um dos grandes referenciais do missionarismo celta: “Aqueles que desejam conhecer as grandes profundidades precisam primeiro perceber o mundo natural”. O espírito viajante dos peregrinos celtas seria responsável pela instalação de muitos núcleos cristãos ao longo de todo o continente europeu. Um deles seria o mosteiro fundado na cidade italiana de Bobbio no século VI, pelo próprio Columbano. Há comprovações históricas de que mais de 600 anos depois a instituição seria responsável por parte da formação religiosa daquele que seria um dos grandes vultos da cristandade: Francisco de Assis. Diante dessa constatação parece inevitável não relacionar a tradição cristã celta que marca a fundação do mosteiro e a proposta de cristianismo lançada pelo “Santo de Assis”, totalmente singular em relação ao catolicismo do século XII em que viveu. A mesma identidade entre a natureza e o criador, o mesmo amor por um cristianismo que não media distâncias, a mesma visão do evangelho como uma realidade a ser praticada na própria dinâmica da vida. Não faltou quem tenha relacionado criações franciscanas como “O cântico do irmão sol e da irmã lua” com o estilo das tradicionais poesias bardas. A forte presença de missionários cristãos celtas por toda a Europa haveria também de propiciar outras contribuições para a doutrina da Igreja. Uma delas é a confissão auricular, feita apenas entre o fiel e um religioso, com o objetivo de suscitar um exame íntimo de consciência por parte da criatura que se julgava em pecado, em substituição aos grandes eventos coletivos onde o fiel dividia com toda a comunidade seus desvios morais. O hagiológio católico também sofreria a influência dos cristãos celtas. Muitos santos eram primeiramente divindades ou espíritos cultuados desde as antigas tradições célticas pré-cristãs, que ao receberem o toque da canonização se tornavam compatíveis com a doutrina do catolicismo predominante.
 
O ocaso do cristianismo celta teria seu início principalmente no século VIII, quando muitas invasões de vikings obrigariam ao desmantelamento de muitos mosteiros instalados na parte insular da Europa, causando uma grande dispersão de fiéis e religiosos e principalmente dando fim às bibliotecas ali presentes, recheadas de escritos teológicos e de poemas de exaltação à criação. Mas não viria apenas de povos estrangeiros a extinção dessa cultura religiosa. À medida que uma religiosidade cristã celta vai se solidificando dentro do panorama da igreja católica muitas pressões vão surgindo para a unificação do culto e o consequente esvaziamento das manifestações célticas como parte das práticas cristãs. O prestígio de costumes religiosos proveniente de fontes druídicas era cada vez mais questionado, assim como certos rituais voltados para celebrar os ciclos agrícolas, uma sobrevivência muito persistente em comunidades cristãs celtas, eram condenados por muitas autoridades eclesiásticas como práticas não cristãs. As drásticas modificações promovidas na estrutura do catolicismo entre os séculos XI e XII, principalmente a instituição do celibato para os religiosos e a grande concentração de poder em torno da figura do papa, tratariam de praticamente inviabilizar a presença de expressões como a do cristianismo celta dentro das práticas católicas. Colaborariam muito para isso o surgimento e fortalecimento de novas ordens monásticas, muito mais identificadas com a visão de um catolicismo continental, como a ordem de Cister, por exemplo, que pouco a pouco imporiam uma certa marginalização ao cristianismo celta. Os grandes monastérios celtas cada vez mais eram dirigidos por monges não celtas, principalmente anglo-normandos, que não só ajudariam a pôr no esquecimento a religiosidade celta, como abririam caminho para desfechos políticos que culminariam em transferências de territórios tradicionalmente habitados por praticantes de cristianismo celta a senhores feudais aliados a setores então dominantes da igreja. A presença no catolicismo de expressões religiosas provenientes da cultura celta sofreria seu golpe final em 1152, quando em um sínodo realizado na cidade irlandesa de Kells se decidiria pela proibição das idiossincrasias celtas em toda a liturgia do catolicismo. O cristianismo ficaria definitivamente privado da força mística e da espiritualidade de uma das mais marcantes contribuições culturais já a ele agregadas.
 
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Coluna Sandro Gomes, a espiritualidade celta
 
 

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