O sertanejo repaginado na arte de Luiz Gonzaga


Para a maioria dos brasileiros a música de Luiz Gonzaga é a mais pura expressão da cultura popular do Nordeste. Melodias de sonoridade triste, que sugerem a penúria das condições de vida dos sertanejos dessa região do Brasil, vitimados pela seca e pelo abandono, se intercalam com levadas furiosas do fole da sanfona, símbolo máximo da alegria, expressando uma gente que, a despeito de todas as condições de vida, confirma a qualidade de força e resistência que um dia Euclides da Cunha utilizara para se referir às gentes dos sertões que ele conhecera de perto.

 

Mas quem viaja na regionalidade da música do Gonzagão dificilmente vislumbra as condições a partir das quais nasceria esse ícone da vida do Nordeste. O berço de sua arte paradoxalmente não foi seu Pernambuco natal nem as paisagens únicas do semiárido, mas o Rio de Janeiro capital do Brasil onde vai viver a partir de 1939. É ali, embalado pelas ondas da Rádio Nacional, onde a música acontece no país, que Luiz Gonzaga vai compor na medida perfeita o tipo que o consagraria: uma versão do homem do sertão adaptada à realidade urbana de um Nordeste que se reorganiza nas grandes cidades do Sudeste, para onde levas intermináveis de filhos da seca migram em busca de melhores condições de existência.

 

Para compor o seu personagem, Gonzaga contaria com a ajuda de outro nordestino radicado no Rio de Janeiro, o cearense Humberto Teixeira, advogado e poeta com quem acabaria sendo responsável por vários clássicos da canção popular brasileira. Mas, mais que uma parceria, Luiz Gonzaga expusera ao novo amigo suas ideias a respeito de criar algo que funcionasse como um movimento de recriação da música do Nordeste. As linhas mestras dessa concepção já estavam fixas na cabeça do músico, que a essa altura já havia trilhado um percurso considerável como instrumentista, gravando discos e participando dos famosos programas de rádio.

 

A sanfona, um símbolo da cultura nordestina, seria um dos primeiros alvos dessa espécie de releitura proposta por Luiz Gonzaga. No leiaute típico com que passaria a se apresentar aparecia sempre com a sanfona de 120 baixos, que era como a última geração do instrumento na comparação com os tradicionais foles, de apenas oito baixos, com que músicos nordestinos se apresentavam. Um símbolo de modernidade e contemporaneidade, portanto, com que Gonzaga começava a sugerir uma nova forma de compreender a cultura de sua região de origem.

 

O próprio figurino por ele utilizado seria uma importante inovação. Diferente da forma com que costumava se apresentar nos shows e programas de rádio, com camisa, terno e gravata, Luiz Gonzaga agora assomava os palcos com a vestimenta típica do vaqueiro do sertão, o gibão que protege dos mandacarus e o inconfundível chapéu de couro, que Gonzaga enfeita com figuras geométricas e imagens sacras, sugerindo de carona a presença de outro grande ícone da cultura nordestina, que foi Lampião. Vale lembrar que o Rei do Cangaço tinha morrido em 1938, apenas alguns anos antes das primeiras aparições de Gonzaga, de modo que o conjunto de lendas, contos populares, cordéis e até mesmo as reportagens um tanto quanto ficcionais envolvendo seus feitos, configurando-o como um símbolo de bravura e resistência para os nordestinos, é algo ainda bem fresco na percepção popular.

 

Mas a grande cartada de Luiz Gonzaga seria mesmo em sua estética musical. O termo “baião” só era usado até então no círculo restrito dos violeiros do Nordeste e pouco tinha a ver com o ritmo desenvolvida pelo artista. O formato tradicional de execução do baião, com o trio formado por sanfona, zabumba e triângulo, também não era o mais comum, apesar de já existir. Foi Gonzagão que o fixou e aprimorou. Há quem afirme que o triângulo não era propriamente um instrumento, mas um objeto que os vendedores de biscoito tradicionais em várias cidades do sertão empregavam para chamar a atenção para sua chegada.

 

As letras seriam outra grande sacada. De um modo geral não existiam nos bailes tradicionais do sertão nordestino, onde as pessoas se reuniam principalmente para dançar ao som incendiário da sanfona. Humberto Teixeira as teria introduzido a partir de letras de canções folclóricas e cantos religiosos, mas carregando-as de temáticas que falavam diretamente ao coração de uma gente saudosa de sua terra natal, da qual tiveram de se separar pela impossibilidade de viver num sertão castigado pela seca. Nordestinos fora do seu hábitat, portanto, que traziam ainda viva na memória a lembrança de suas origens. Sertanejos já aculturados no ambiente urbano do eixo Rio-São Paulo que se conectavam a suas raízes principalmente pela memória, como aliás era o caso de Luiz e Humberto. Dessa forte presença da mensagem social e cultural nas letras cantadas por Luiz Gonzaga surgiriam verdadeiros hinos da vida nordestina, como a eterna “Asa Branca”, de dezenas de interpretações por artistas brasileiros mesmo de outras vertentes musicais, que se incorporaria definitivamente ao cancioneiro do Brasil.

 

A ascensão do “Rei do Baião” também se revestiria de outro importante significado para a gente do Nordeste, o do filho da terra capaz de vencer na cidade grande e poder influenciar todo o país com a força e a beleza da cultura de sua região. De fato, a chegada avassaladora da música nordestina pela via da obra de Luiz Gonzaga representou a abertura de uma nova referência estética que haveria de influenciar várias gerações de artistas. Não apenas contemporâneos do surgimento do baião, lotados na cultura fonográfica das rádios e dos discos, como também nomes que representariam novas tendências culturais e musicais no Brasil. Dos tropicalistas Gil e Caetano até a levada de bandas contemporâneas como os mineiros do Skank, passando pela geração de artistas de classe média de formação universitária, como Elba Ramalho e Alceu Valença, e de movimentos que igualmente apostariam na fusão entre a tradição e a modernidade tecnológica, como o Mangue Beat, de Chico Science. Tudo fruto de uma genial conjugação da força cultural e musical de uma região que até então pouco conhecida dos brasileiros com a contemporaneidade dos filhos da terra cada vez mais adaptados a um Brasil que se torna cada vez mais urbano. Fruto da pujança cultural da gente do sertão, que Luiz Gonzaga soube traduzir para o cosmopolitismo da capital do país, a partir daí ganhando o mundo.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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